Entrevistas

‘Os ciganos sempre se desenrascaram e viveram como apátridas’

Um estudo da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia aponta para que 62% dos ciganos em Portugal declararam terem sentido discriminação no último ano, a percentagem mais alta dos 12 países europeus participantes no inquérito.

A comunidade cigana continua a ter dificuldades na sua inserção, quer ao nível escolar, quer no mercado de trabalho, e a situação é ainda mais complicada para as mulheres.

Portugal foi um dos países onde mais aumentou o número dos que se sentiram discriminados por serem ciganos ao procurarem emprego (47% em 2016 e 81% em 2021 – média da UE o ano passado foi de 33%) e aquele onde mais inquiridos se sentiram discriminados no acesso à saúde e onde a percentagem mais aumentou (de 5% para 32% em 2021 – UE aumentou de oito para 14%).

Na entrevista que o Diário do Distrito realizou com Sónia Matos, presidente da AMUCIP – Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, a mais antiga associação do género em Portugal, que foi criada no concelho do Seixal em 2000, abordámos a situação desta comunidade no nosso país.

Sónia Matos relembra o passado da sua comunidade, na voz o orgulho de quem “nunca dependeu de ninguém. A nossa postura passou de pais para filhos, de que ‘sempre nos desenrascámos’. O meu avô foi tosquiador, depois veio o negócio dos cesteiros, depois vieram os mercados. Os ciganos sempre trabalharam, à sua maneira.  

Infelizmente só agora dependemos do Estado, porque nunca tivemos um sopro de ajuda de ninguém, sempre sobrevivemos sozinhos e como apátridas. E isso é algo que me revolta.

Ainda hoje sou convidada para estar em locais e eventos sobre migrantes, e é o Alto Comissariado para as Migrações quem define as estratégias para a comunidade cigana.

Mas nós nascemos cá, não somos migrantes. Sou portuguesa, o meu luto é o luto do meu país, e está tudo enraizado dentro de mim. O meu pai nunca me ensinou outro hino.

Por isso não me comparem com uma pessoa de ascendência africana, porque os pais dessa pessoa trouxeram consigo as suas raízes, os seus costumes, ao passo que a minha cultura é a portuguesa, não tenho outra. O que me revolta é quando me tiram a minha identidade.”

Sónia Matos, presidente da AMUCIP – Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas

A pergunta surge, do ponto de vista de uma não-cigana: mas essa diferença não é também cultivada pela comunidade cigana?

A comunidade cigana criou vícios como forma de sobrevivência e de resistência, criando um núcleo casando entre si, o que perpétuo a sua cultura.

Acho que a sociedade cigana age consoante aquilo que a sociedade maioritária espera deles, e a única imagem que lhes passam é a de que ‘tu não és ninguém’, ‘tu não és daqui’ e o ‘tu nunca vais ter sucesso’, imagem essa que vai sendo interiorizada.

Ainda recentemente estive numa loja de roupa onde o segurança andou todo o tempo atrás de mim, e quando fui pagar, chamei-lhe a atenção para esse comportamento, apesar de ele negar.

Quando me perguntam o que acho do que diz o André Ventura, só respondo que não acho nada porque vivi isso toda a minha vida. Só que o faziam sem verbalizar, e agora surgiu alguém que diz tudo isso.”

Se é possível a comunidade cigana pode mudar essa imagem? “Ninguém muda ninguém, só muda quem quer mudar e a partir do momento que se quer mudar. A comunidade cigana não é um todo, são muitas pessoas, e dentro destas há muitas diferenças. Não posso, não quero, nem tenho o direito de dizer a uma mulher cigana que, porque não frequentou a escola e casou aos 16 anos, a sua vida é errada, e que eu é que estou certa porque só tive filhos aos 34 anos.

Por isso é que digo que a AMUCIP existe para ajudar as mulheres ciganas que querem mudar, que querem estudar, que querem ter o futuro nas suas mãos. Em suma, terem a resposta que a minha geração não teve e terem também o exemplo de outras que estão a estudar e a trabalhar, o ‘se elas conseguem, eu também consigo’.”

E aponta como exemplo o Programa Operacional de Promoção da Educação – OPRE é uma medida de apoio com bolsas para jovens estudantes universitários da comunidade cigana, financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações, I.P. através do Programa Escolhas, “que começou com 8 alunos ciganos e agora tem um total de 40”.

Sónia Matos aponta também uma situação que veio alterar “para pior” a vida na comunidade cigana, que foi a pandemia de covid19. “Acabaram as rotinas dentro de uma casa cigana. Era o levantar pelas 07h00, cuidar da casa, ir para os mercados, e as mais jovens cuidavam dos irmãos. Agora os jovens dormem até às 17h00 e levam as madrugadas a ver filmes, enquanto os pais estão a fazer os directos para as vendas online, porque as vendas nos mercados praticamente acabaram. Fora da comunidade cigana, pensam o negócio das vendas tem tudo gratuito, mas quem tem bancas é como ter uma renda de casa, e dou-lhe um exemplo: para fazer todos os mercados apenas aqui no concelho, é preciso pagar mais de 200 euros por mês, valor que é agora incomportável.

E esta nova rotina reflecte-se também nas crianças que, se estiveram acordadas até tarde, não conseguem depois estar atentas nas aulas.”

Quanto à alteração da forma como a comunidade cigana é encarada, é perentória: “só haverá abertura e mudança desta comunidade no dia que a sociedade passar a encará-los enquanto indivíduos e ‘pessoas’.”


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