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‘Saímos do contexto daquilo que é esperado de uma mulher cigana’

Na tarde de chuva, propícia a conversas, o Diário do Distrito foi recebido no novo espaço da AMUCIP – Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, a mais antiga associação do género em Portugal.

A AMUCIP surgiu em 2000 no concelho do Seixal, “pela mão de uma viúva cigana, Olga Mariano, com a ajuda de outras quatro mulheres” explica Sónia Matos, actual presidente e uma das cinco mulheres ciganas fundadoras.

“Foi a Olga quem deu o ‘pontapé de saída’ e uma voz às mulheres viúvas desta comunidade, e na altura foi alvo de muitas críticas, porque nunca tal se tinha visto.”

Estas críticas da comunidade cigana estenderam-se também “às outras quatro mulheres, porque também nunca se tinha visto meninas solteiras a trabalhar”, relembra Sónia Matos, uma dessas raparigas.

O ‘pontapé de saída’ ocorreu depois de todas terem participado num projecto de formação em 2006 para mulheres ciganas mediadoras sócio-culturais, promovido pelo Centro de Formação de Migrantes e apoiado pela Igreja Paroquial da Amora.

“Na altura, só existiam mediadores homens. Um dos formadores identificou a potencialidade de alargar a formação a mulheres ciganas, mesmo contra a opinião de quem achava que o projecto não iria vingar. A verdade é que as mulheres ficaram todas a trabalhar e neste momento há muitos poucos homens nesse papel.”

Além de se conhecerem, a formação “deu a base para fazermos uma recolha das problemáticas que existiam com a comunidade cigana em Portugal”.

Seguiu-se um período em que “estivemos a ganhar experiência com trabalho em instituições como o Centro Comunitário Várias Culturas, onde eu estive; a Olga e a Noel foram para Lisboa trabalhar com o Professor Roque Amaro, como mediadoras numa escola em Telheiras, a Alcinda ficou no CEFEM a trabalhar no Fogueteiro, e a Anabela ficou no Centro Comunitário do Pica Pau.

E ainda bem que o fizemos porque isso foi fundamental para manter a AMUCIP, ao permitir-nos aprender toda a burocracia essencial numa Associação.”

Ao mesmo tempo, iam desenvolvendo “em regime de voluntariado” o trabalho da AMUCIP “e durante quase quinze anos o espaço para reunirmos eram os carros, as bagageiras e os cafés”.

Em 2007 tiveram finalmente projectos financiados a nível europeu e também o primeiro espaço físico, cedido pela Câmara Municipal do Seixal, no Bairro da Cucena.

Sónia Matos é uma das cinco fundadoras da AMUCIP e actual presidente

‘A sociedade ficou fascinada com cinco mulheres ciganas que abriam a boca e até sabiam falar’

Prestes a completar 22 anos “de uma luta que não é fácil, mas que alguém tem de fazer”, Sónia Matos recorda as várias fases da vida da Associação.

“Os primeiros anos foram muito complicados, porque o associativismo era uma palavra muito recente em Portugal, e mais ainda quando se tratava de mulheres ciganas a falarem em nome de uma comunidade patriarcal, onde o homem é que tem a palavra. Também nem sabíamos o que era e para o que servia uma Associação.”

Nos primeiros quinze anos, Sónia Matos reconhece que “o nosso trabalho passou muito pela sensibilização e o dar a conhecer a cultura cigana à sociedade maioritária. Fomos a primeira associação a desenvolver, a nível nacional, vários projectos de formação nessa área.

Os primeiros passos centraram-se num objectivo: ajudar a comunidade cigana, principalmente as crianças, no seu percurso escolar.

“No levantamento das problemáticas, verificámos que não havia crianças ciganas a frequentar o pré-escolar. Hoje já vamos vendo algumas ‘migalhinhas’, porque perceberam que isso é muito positivo para as crianças, algumas das quais chegam a entrar na escola primária, com seis anos de idade, sem saberem usar uma tesoura e com muito menos instrumentos que as que frequentaram o pré-escolar, o que as coloca logo em desvantagem.”

Lentamente, admite, ‘temos conseguido fazer essa mudança, porque a verdade é que a família é o pilar da comunidade cigana, e o papel da mulher é cuidar dos filhos. E sendo uma cultura de ‘família alargada’, se a mãe não pode ficar com a criança, há sempre uma tia ou avó que o faz. Foi preciso tentar mudar a ideia de que a criança deve ir, a partir dos quatro anos, para o pré-escolar, e são agora as mães que reconhecem como isso é positivo.”

Outro dos objectivos da AMUCIP é o empoderamento das mulheres ciganas e a sua integração no mercado de trabalho, o que “também não tem sido fácil. Foi preciso lidar com as instituições, com a sociedade maioritária, e com a comunidade cigana” frisa Sónia Matos.

“Por um lado, a sociedade ficou fascinada com aquelas cinco mulheres ciganas que abriam a boca e até sabiam falar, e por outro lado tínhamos uma comunidade desconfiada dessas cinco que estavam a falar por eles. Nem as próprias mulheres ciganas se sentiam representadas pela AMUCIP, porque tínhamos saído do contexto daquilo que é esperado de uma mulher cigana.”

Apenas ao fim de quinze anos de trabalho de terreno, “com técnicos, com sensibilização e com muito trabalho escolar, fomos criando o nosso próprio processo, até que chegou o momento em que consideramos estar preparadas para trabalhar com a comunidade cigana: tínhamos uma voz, conhecíamos a realidade e sabíamos com o que podíamos contar das partes institucionais.”

E contavam com algo bastante importante: “não tínhamos ainda a aceitação, mas já contávamos com o reconhecimento dentro da comunidade cigana de que «elas fazem este trabalho».”

Apesar do reconhecimento obtido pela comunidade cigana, Sónia Matos lamenta que esta “ainda não tenha chegado à fase de entender que todo o trabalho que fazemos é muito importante, apesar perceberem que um documento passado pela AMUCIP para apresentar em instituições como o Centro de Emprego, é reconhecido e tem valor, o que ajudou a criar a nossa credibilidade”.

Outra situação que gostaria de ver alterada “é a forma como a comunidade continua a não olhar a escola como essencial para os seus filhos. Encaram a escola como sempre a encararam, como um meio para conseguirem tirar a carta de condução e se desenrascarem, o que foi também o pensamento da sociedade maioritária durante séculos em Portugal.”

Decoração do espaço da AMUCIP pelo Atelier Cristies, em que as cadeiras representam a mulher e o homem ciganos

Experiência no Bairro da Cucena não terminou bem

Em 2007, como já foi referido, iniciaram os projectos no bairro social da Cucena, num espaço físico “cedido pela autarquia do Seixal, mas que tinha apenas as paredes, nem tecto tinha. Candidatámo-nos e obtivemos um apoio de 50 mil euros da Associação Mutualista do Montepio, para as obras”.

Este espaço recebeu durante três anos “um projecto de apoio escolar às crianças em parceria com a Associação ‘Pelo Sonho é que Vamos’, recebeu também tertúlias, e os primeiros encontros com técnicos do IEFP, sempre muito procurados.

Foram anos de grande trabalho a criar laços com aquelas pessoas e que se habituaram a ter ali a AMUCIP, mas quando o financiamento acabou, surgiram os problemas.

As pessoas não perceberam o porquê de perderem o apoio ali era prestado, mas sem financiamento os formadores tiveram de ir trabalhar para outros locais.”

Durante cerca de um ano a actividade da AMUCIP no bairro esteve suspensa “até que surgiu um curso de formação com bolsas, mas era exigido o mínimo de escolaridade ao nível da quarta classe. Infelizmente no Bairro da Cucena apenas uma menina cumpria os requisitos, e foi colocada nesse curso, que foi composto por pessoas residentes noutras zonas.

Isto gerou revolta nos residentes, que também não entendiam que, tratando-se de cursos com bolsas, não eram atribuídos aos moradores do Bairro. isso criou conflitos e o edifício foi mesmo assaltado e vandalizado por toxicodependentes.”

‘Nada nos fez parar porque nómadas sempre fomos’

Apesar do revés, não desistiram “e através da Câmara Municipal, da Secretaria de Estado e do Alto Comissariado para as Migrações, entidades que se aprontaram a ajudar, começámos à procura de um novo espaço para serem ministrados os cursos.

Ao longo destes 22 anos temos tido vários entraves, mas nada nos fez parar porque nómadas sempre fomos.”

E surgiram novos entraves. “Como é que conseguíamos alugar uma loja? Assim que mostrava os estatutos da Associação, e viam o termo ‘ciganas’, os espaços ficavam logo indisponíveis.”

A AMUCIP conseguiu por fim um espaço na Avenida Carlos Oliveira, “que pertencia à minha entidade patronal com a qual trabalhava há 18 anos, e conheciam bem o meu percurso” frisa Sónia Matos. 

“Agora imaginem um casal de ciganos que quer alugar uma casa… são obrigados a viver em bairros sociais, porque ninguém lhes aluga casas. Mesmo que peçam a amigos para assinar contratos de arrendamento, quando descobrem que são ciganos estes não são renovados.”

Foi neste espaço na freguesia de Arrentela “onde começámos a aventura com as mulheres ciganas e não sabíamos o que esperar”.

O processo passa por “construir uma pedagogia com elas, e quando sentimos que estão preparadas, encaminhamo-las para as instituições que desenvolvem trabalho de integração, quer seja no desenvolvimento da escolaridade, quer seja em cursos como unhas de gel, que podem depois desempenhar nas suas casas, ou de artes e patchwork, numa parceria com as Oficinas Cargaleiro, algo que é também da nossa cultura e que estamos a pensar desenvolver para venda de peças.”

No campo da aprendizagem foi realizada uma parceria com a Escola Secundária de Amora, através do Centro Qualifica, “onde temos feito um trabalho excelente com aqueles professores, que tiveram uma formação de sensibilização da cultura cigana, e com quem trabalhámos ao pormenor os horários e os conteúdos das aulas, adaptando-os para que todas pudessem participar”.

O sucesso foi de tal ordem que “agora são os maridos que nos batem à porta a pedir quando é que fazemos formações para eles, sobretudo na área das tecnologias, porque começam a perceber que lhes faz falta aprender”.

No entanto, o processo inicial também não foi fácil. “Antes delas começarem os cursos na ESA, estive um ano com essas mulheres nas instalações da AMUCIP, num curso de empoderamento, em que participaram oito mulheres. Mas nos primeiros seis meses, era eu quem tinha de lhes segurar os filhos, muitos dormiam na sala, ia buscar outros à escola, para as poder ter lá, porque elas não conseguiam fazer entender ao marido e às outras mulheres da família de que precisavam daquele tempo para irem às nossas instalações para se prepararem para as formações.

Depois de vários contratempos, “foi preciso dizer-lhes ‘meninas, isto assim não dá, os vossos maridos têm de começar a ficar com as crianças’, sensibilizando-as também que quando fossem começar os cursos na ESA não podiam levar os filhos. Começaram a conversar com os maridos e no final do ano, às 18h00, já os tinha à porta com os filhos no carro a perguntarem quando é que elas saiam.”

Sónia Matos admite que “do lado das instituições não há preparação para a realidade da comunidade cigana, e por isso quando desenvolvemos qualquer projecto, é sempre necessário começar pela base, mas tudo leva tempo”.

Os projectos da AMUCIP passam agora por “apostar mais nas jovens mulheres ciganas, motivando-as para continuarem a sua escolaridade, porque enquanto solteiras não têm liberdade para poder estudar, e como casam muito novas, depois têm uma liberdade diferente”.

Outro aspecto que Sónia Matos destaca é “o interesse destas mulheres em terem os seus negócios, muitas gostariam de poder ter umas bancas de comida tradicional, porque adoram cozinhar. Mas são processos que levam muito tempo, e estas pessoas não sabem viver a longo prazo. Vivem o ‘agora’, o ‘já’, o ‘hoje’, porque amanhã não sei se estou cá. E o pensar uma universidade, um futuro, é ter essa noção que a comunidade cigana não tem.”

Apesar de tudo, reconhece que “muito mudou nestes anos, era impensável um cigano frequentar uma universidade, a escola era apenas para ‘o desenrascanço’, mas ainda há entraves ao papel que a mulher cigana pode realmente desempenhar”.

Quadro que representa a cultura cigana proveniente da zona de Punjab na Índia

Cursos do IEFP e Kit Pedagógico

Ao longo destes 22 anos, a AMUCIP tem conseguido agregar várias instituições “e este é o nosso segredo, a associação nunca trabalha sozinha”.

Estas parcerias têm permitido o desenvolvimento dos projectos e o futuro já se desenha.

“Queremos trazer as formações do IEFP a funcionar aqui neste espaço, e foi-nos dada a possibilidade de escolher os formadores, permitindo escolher técnicos que já trabalharam com as nossas mulheres, uma vez que o princípio de qualquer formação é o formador que a ministra, e que consegue captar o interesse, o que é ainda mais importante no caso das mulheres ciganas.

Com tempo, pretendemos criar neste espaço um centro de formação profissional reconhecido a nível nacional, com uma metodologia e pedagogias específicas, e alargar também as formações aos homens ciganos. E com cursos coerentes, em vez dos actuais cursos de 25 horas para procura de emprego e de ‘validação de competências’.”

Além destes cursos, a AMUCIP tem este ano “dois projectos, um PAC e um FAB, mas as verbas não são muitas, temos o financiamento de 10 mil euros para um destes e para um ano, o que não dá para pagar sequer um recurso humano e outro de 15 mil euros, para dois formadores, a recibos verdes, que é o meu caso.

Mas se tivermos o PRR financiado, poderemos desenvolver outros trabalhos com a Câmara Municipal, e teremos outro desafogo e pode ser que pela primeira vez eu possa ter um contrato de trabalho, através da AMUCIP.”

Sónia Matos reconhece que “a Câmara Municipal do Seixal tem estado ao nosso lado, mas também refiro que muitas instituições no concelho tiveram mais depressa ajuda do que a AMUCIP, foi preciso termos um projecto aprovado ao nível europeu. E a autarquia do Seixal já recebeu dois projectos à conta da AMUCIP, pelo que ‘uma mão lava a outra’.”

A parceria com o município irá permitir à Associação “trabalhar mais com as escolas do concelho, através do Kit Pedagógico de divulgação da cultura cigana, validado pelo Ministério da Educação e que foi uma outra vertente muito importante da AMUCIP”.

A mudança ocorre também com o acesso ao ensino superior, “que tem vindo a ser promovido também através do Programa Operacional de Promoção da Educação – OPRE, uma medida de apoio com bolsas para jovens estudantes universitários da comunidade cigana, financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações, através do Programa Escolhas.

E a verdade é que os meninos não ciganos têm adorado este projecto, porque ensinamos palavras da língua romani, e se calhar pela primeira vez a informação sobre a cultura cigana entra de forma positiva em muitas casas, através dos mais novos, desmistificando os estereótipos que foram criados ao longo dos séculos.”

Quando surgiu, foi criticado porque havia quem considerasse que se os ciganos nem conseguem completar o ensino primário, também não conseguiam ir para a Universidade. O que é certo é que começou com 8 alunos e agora são 40.”

Em jeito de conclusão, Sónia Matos frisa que “a AMUCIP existe para ajudar as mulheres ciganas que querem mudar, que querem estudar, que querem ter o futuro nas suas mãos.

Em suma, terem a resposta que a minha geração não teve e terem também o exemplo de outras que estão a estudar e a trabalhar, o ‘se elas conseguem, eu também consigo’.”

Prémios atribuídos à AMUCIP:

‘10 milhões de Estrelas – Um Gesto pela Paz’ atribuído pela CARITAS Setúbal;

Prémio ‘Fundação Montepio Geral’ atribuído pela Fundação Montepio Geral no âmbito da responsabilidade social;

Prémio ‘Saber Mais’ atribuído pela ANEFA através do Concurso Nacional «Saber Mais», em 2001.

Prémio ‘Igualdade na Diversidade’ do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidade para Todos (Prémio Regional e Prémio Nacional)

Prémio atribuído pela CIG (Conselho para Igualdade de Género) para distinguir a AMUCIP, pelo trabalho desenvolvido em prol da integração e desenvolvimento das mulheres e das crianças ciganas em Portugal, com respeito pela sua identidade cultural.


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