Opinião

QUEM TEM MEDO DA MARIA DA FONTE?

Uma crónica de Nuno Gonçalves

A justiça tem o seu tempo e tem também os instrumentos necessários para corrigir decisões erradas. Claro que pode e deve ser sindicada pela sociedade que serve, mas essa fiscalização deve ocorrer depois do resultado final da sua acção.

Analisando todos os dados dos processos e verificando se esta cumpriu ou não a sua função de trazer a paz, a coesão social e de defesa dos valores comuns da comunidade.

Faze-lo antes da decisão final não é fiscalizar, é tentar influenciar o julgador, incendiando a turba, sedenta de justiça, e conduzindo-a a exercer uma pressão, sempre nefasta, sobre o processo com vista à obtenção de um certo desfecho.

Ora, como todos os que estamos mais atentos a estas questões bem sabemos, a verdade e a justiça absolutas são uma utopia dos deuses. Nós somos seres humanos.

O que fazemos nós Homens é uma mera aproximação ao ideal de justiça. E sabemos igualmente bem que nem sempre o que luz é ouro e que o justicialismo e os justiceiros são afinal o grande inimigo da justiça

Vejamos por exemplo o caso BES. Todos acusam o Salgado e o Sócrates de serem o diabo e os causadores de todos os males dos últimos anos.

Mas façamos um exercício de inteligência, o Salgado e o Sócrates foram já condenados? Isto é provou-se para além de qualquer dúvida razoável que prevaricaram? E já agora, quantos de nós, sabem verdadeiramente de que estão acusados? Não me refiro aos crimes que lhes são imputados, mas aos factos que preenchem o respectivo tipo. Ou caberá tudo na definição genérica de ladrões da pátria? E se se vier a provar que fizeram o que estão acusados de ter feito, agiram sozinhos? Quem, para além dos próprios, beneficiou das suas condutas? Alguém verdadeiramente sabe porque caiu o BES? E porque caiu desta forma? Alguém sabe quem verdadeiramente convenceu Passos Coelho que tinha de ser assim? Quem ganhou com a resolução do BES? O povo não foi de certeza.

Todavia a justiça não é moral nem política, embora deva reflectir os valores éticos de uma sociedade. Na verdade, enquanto vamos pressionando a justiça para que condene os que já foram condenados no tribunal plenário da opinião publicada, os velhos senhores vão tomando o seu chá impávidos e novos senhores vão emergindo na sombra, continuando tudo na mesma podridão. 

E se a justiça por ventura, porque está refém, imagine-se, do princípio da presunção de inocência, não conseguir condenar os larápios, então é ela própria que está condenada ao descrédito e à má fama. A turba, manipulada e cheia de raiva, justa quanto aos motivos diga-se, logo tratará de transpor a culpa dos putativos criminosos para o sistema de justiça e para os seus operadores, acusando-os de serem coniventes ou corruptos.

Mas porquê este incitamento ao linchamento público?

Porque o regime atingiu um tal estado de podridão que já não consegue esconder o seu cheiro fétido. Ora, é dos livros que mais vale sacrificar alguns oligarcas para apaziguar a ânsia de justiça do povo esfomeado do que correr o risco de este acordar e tomar o que é seu nas próprias mãos. É uma espécie de válvula de escape, de encenação quixotesca dos que temem uma nova “Maria da fonte”(1).

Mas a verdade é que o regime perdeu a vergonha e a culpa é antes de mais nossa, porque nos demitimos de intervir civicamente e assumimos sem grande resistência a nossa condição de consumidores, cada vez mais amorfos e acríticos a tudo o que não seja futebol ou “reality shows”.

A recente pandemia que vivemos mostrou à saciedade o estado de demência e atrofia de grande parte da sociedade, mesmo dos que deviam estar mais alerta por dever de ofício.

Veja-se por exemplo o que aconteceu com as recentes eleições para bastonário da Ordem dos Advogados, onde depois de anos criticas e queixas por falta de condições de trabalho, de protecção e assistência na doença, os advogados acabaram por escolher a continuidade, preterindo o único projecto, liderado pelo advogado António Jaime Martins, que tinha realmente condições para dar um murro na mesa e mudar o paradigma da advocacia enquanto profissão livre.

E agora que o resultado está à vista e os advogados se sentem ainda mais abandonados voltam as queixas e as criticas.

Para darmos a volta e reconquistarmos o nosso direito de sermos felizes é preciso acordarmos da passividade em que nos mergulharam anos de consumismo desenfreado. É preciso serenidade, capacidade crítica e firmeza nas escolhas.

Mas parece que ainda não compreendemos que, para salvar a república e a democracia, antes de mais somos nós cidadãos quem tem de mudar.


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