Opinião

Impressões de uma pandemia desconfinada!

A partir de 4 de Maio de 2020, e com uma calendarização gradual, teve início o muito desejado processo de desconfinamento, sem prejuízo de serem aplicadas ao mesmo rígidas regras de higienização e segurança com vista a prevenir o contágio pelo teimoso e persistente COVID-19, que ao que parece, veio para uma estadia prolongada embora indesejada.

Perante este cenário, desde logo se suscitam algumas reflexões: sendo certo que estávamos desejosos para desconfinar, que o excessivo confinamento a que a maioria da população foi sujeita causa sérios problemas mesmo ao nível de saúde mental (somos seres sociais e gregários, e mesmo os que se achavam menos sociais agora aprenderam da pior maneira que não são assim tão desligados e avessos ao contacto humano como julgavam ser), será que estamos confiantes o bastante na nossa segurança e na possibilidade de minorar o risco de contágio?

Creio estarmos, em grande parte, divididos entre a vontade de regressar à normalidade (ainda estamos bem longe da mesma, se é que será nesta geração que poderemos recuperar a vida que vivíamos) e o medo de que algo de muito mau possa acontecer-nos fora da segurança das nossas casas.

O medo limita-nos a acção, condiciona decisões, torna-nos frágeis, vulneráveis e, se acumulado e persistente, pode criar barreiras difíceis de ultrapassar sem ajuda especializada em termos psicológicos. Será necessário reconquistar a confiança perdida para vencer o medo de voltar à vida em sociedade, vencer resistências, criar bases de sustentação dessa confiança e segurança, para que possamos começar a construir certezas que, gradualmente, venham substituir um imenso leque de dúvidas, incertezas e temores.

Se alguns agem e reagem com excesso de confiança, assumindo atitudes de risco (já ouvi discursos de desvalorização nos quais as pessoas dizem que em nada alteraram a sua vida perante a pandemia, com excepção das proibições legais, e aqui entre nós, conheço casos em que nem mesmo a lei foi respeitada teimosamente, como se fossem seres de natureza superior aos humanos), há quem se recuse a manter o distanciamento social , insistindo em impor a sua proximidade a outros (e causando fricções com quem tenha diversa perspectiva), há também quem leve a protecção ao extremo a raiar a paranoia: desinfectar toda e qualquer peça de vestuário ou acessório sempre que regressa da rua, criar zona de segurança e isolamento à entrada de casa impondo a toda a família regras tão rígidas de higienização que nem as mesmas são passíveis de ser aplicadas no mundo cá fora, uso de máscara mesmo se sozinhos no interior de veículos automóveis próprios, uso de máscara na rua mesmo com distanciamento social e em circulação pedonal.

Depois, há o grupo onde me insiro e que nem sei como caracterizar, talvez sejamos cumpridores sofredores e inconformados. Momento de confissão pública: cumpro as regras, uso máscara ou viseira a trabalhar presencialmente, nos estabelecimentos comerciais, mas admito que me causa uma imensa ansiedade esperar em filas de acesso a lojas ou serviços, olhar à minha volta e ver as malditas máscaras, usar a máscara e entrar em hiperventilação (até porque tenho problemas respiratórios e de alergia) sentir um verdadeiro cansaço físico quando faço o esforço de falar atrás da máscara. Aderi ao evitamento que manterei até que não tenha alternativa. Exemplos de evitamento: não entro em espaços comerciais com extensas filas à porta (há dois meses que uso o pequeno comércio tradicional recusando entrar em grandes superfícies comerciais), a simples ideia de me deslocar em transportes públicos causa-me mais do que ansiedade, medo (primeiro porque fisicamente me será penoso usar máscara ou viseira no seu interior, e depois porque receio o contágio por contacto com desconhecidos) nem sequer irei branquear palavras!

Medo dos transportes porquê? Pois bem, porque sendo certo que ali se cruzam pessoas de todas as origens e entendimentos, sendo certo que há portadores assintomáticos do vírus, sendo certo que começam a surgir em força focos de infecção em locais de trabalho com elevada concentração de pessoas (por exemplo em unidades industriais) mesmo na minha área de residência, onde os números começaram a subir e onde a imprecisão da informação permitida divulgar publicamente apenas serve para aumentar a incerteza e o dito medo; sendo certo que é impossível estarmos isolados no meio da multidão e da diversidade em termos de cuidados da parte das pessoas anónimas ou mesmo conhecidas com as quais nos cruzamos, assumo, a simples ideia de andar de autocarro ou metro é assustadora, muito também devido ao facto de sentir que a informação que nos é transmitida é difusa, incompleta, incerta, pouco assertiva (vejamos as máscaras, já foi desaconselhado o uso, agora é obrigatória a sua utilização) e, logo, pouco propícia a gerar confiança.

Também os sectores económicos não são imunes a estas questões. Exemplificando, há comerciantes que arriscam gradualmente voltar a trabalhar, mas em todos há o medo de que os clientes não sejam suficientes para garantir o seu sustento e os encargos. Também a necessidade de higienizar constantemente os espaços tem custos, por um lado, reunir recursos humanos e logísticos encarece os serviços prestados, cria uma demora adicional na execução de tarefas (mas sem dúvida incontornável esta necessidade, e aliás potenciadora de confiança) e adultera os hábitos de consumo tal como os conhecíamos, veja-se a necessidade de reduzir a lotação dos estabelecimentos de restauração, como será a evolução de atitudes entre clientes e operadores económicos?

E o regresso às aulas de alunos do secundário, e o regresso das crianças às creches?Muito embora pessoalmente não tenha esta faixa etária no meu agregado familiar, a verdade é que compreendo que os pais não encarem isto de ânimo leve, muito pelo risco que é inegável, e no caso do ensino, não compreendo porque não é mesmo feito à distância com recurso a plataformas de videoconferência, é a meu ver um risco desnecessário fazer regressar alunos à escola nesta fase.

No que diz respeito às creches e jardins-de-infância, preocupa-me deveras em que moldes se pode impor a frieza das instruções e procedimentos a relações de convívio que são, e têm de ser, propiciadoras de estímulos tendentes ao harmonioso desenvolvimento físico, sensorial e psicológicos das crianças, assumindo-se também claramente a vertente da necessária socialização. Até que ponto é salutar subverter todas as normas de conduta até agora permitidas às crianças? Como se diz a uma criança de tenra idade (e sem capacidade cognitiva para entender estas necessidades de mudança face ao contexto específico) que não pode levar para a escola o brinquedo preferido? Como dizer a uma criança que não pode abraçar nem brincar livremente com os seus amigos (de quem estará naturalmente saudosa após este distanciamento forçado) como explicar a uma criança que, para bem da sua saúde, tem de abdicar de manifestações espontâneas e naturais de afecto como beijos, abraços, carinhos?

E nós todos, de quanto tempo precisamos para viver esta nova vida com conforto? Sem medos? Com confiança? Não sei sequer se tal será possível. Mas de um facto estou certa, mesmo inconscientemente penso que ninguém em seu perfeito juízo encare este novo mundo como normal. Será tempo de começarmos a pensar em iniciativas de promoção de técnicas de gestão de ansiedade, de gestão de stress e de promoção de estratégias de resiliência. Será tempo de começar a pensar num plano nacional de apoio em termos psicológicos, porque saúde mental também é saúde, e as depressões e sintomas de ansiedade estão ai, vieram para ficar e merecem a nossa atenção, são tão inegáveis como o nosso inimigo teimoso e cruel.


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