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“Gerir a Fundação Liga em tempos de pandemia traz uma pressão diária muito forte a todos os níveis”

Em entrevista exclusiva ao Diário do Distrito, o diretor-geral, Gonçalo Solla, conta-nos como é que a Liga está a encarar a pandemia.

A Fundação Liga apoia os mais debilitados há quase 65 anos, mas com a chegada da pandemia viu a situação financeira agravar-se drasticamente. Em entrevista exclusiva ao Diário do Distrito, o diretor-geral, Gonçalo Solla, conta como é que a Liga está a encarar esta fase, tendo em conta que houve a necessidade de inovar na assistência aos clientes.

Gonçalo Solla refere que a Liga – localizada na Ajuda, em Lisboa – teve de se “reinventar e adaptar à nova realidade. Tivemos um programa que nunca esteve suspenso, que é o apoio domiciliário, e a primeira coisa que fizemos foi reforçar essa equipa.

“Com a pandemia, o serviço passou a ser feito de forma digital”

Temos uma grande diversidade de programas e todos eles tiveram de ser adaptados. A intervenção precoce, que tem a ver com a deficiência ou incapacidade das crianças dos zero aos seis anos é feita essencialmente nas escolas ou em casa. Com a pandemia, o serviço passou a ser feito de forma digital. Aliás, foi tudo digitalizado: o Centro de Atividades Ocupacionais, o Clube Sénior, a Escola de Formação, tudo”, disse.

Com a mudança surgiram dificuldades. “Pelas características das pessoas que atendemos, além de terem algumas incapacidades, não são digitalmente avançadas. Muitos não tinham os equipamentos. Com isto tivemos muitas barreiras e dificuldades.

“Estamos a gastar à volta de 10 mil euros por mês em desinfetantes, álcool, máscaras e tudo mais”

Mesmo com reabertura dos serviços em maio, ainda hoje não temos a procura que tínhamos. Em termos financeiros, temos um acréscimo de gastos muito grande. Estamos a gastar à volta de 10 mil euros por mês desinfetantes, álcool, máscaras e tudo mais. Fornecemos máscaras, luvas e aventais a muitos dos nossos clientes. Dois terços dos nossos gastos são com pessoal, ou seja, custos fixos que não temos forma de poupar. As receitas estão a descer e estamos com muitas dificuldades”, completou.

Um dos fatores a ter em conta foi a adaptação dos idosos à tecnologia. “Houve ajuda, com pessoas nossas a irem a casa deles para ajudarem na montagem e conseguimos apoios para fornecer tablets”, disse Gonçalo Solla.

“Muitos idosos já estão a dar aquele ‘salto’ digital: vão ao Facebook e comunicam”

“Temos um Clube Sénior que até é um exemplo citado a nível Europeu como uma boa prática. Mas estamos a falar de pessoas muito sós e era necessário dar esse ‘salto’ de forma digital. Foi criado um grupo específico de Facebook com eles e também por eles. Recebem telefonemas diariamente dos técnicos ou da coordenadora do Clube Sénior, e muitos idosos já estão a dar aquele ‘salto’ digital: vão ao Facebook e comunicam. Um dos grandes objetivos do Clube Sénior é combater a solidão e existe uma aposta muito forte no envelhecimento ativo”.

Contudo, Gonçalo Solla considera que “é muito mais complicado ter esse envelhecimento ativo se eles não podem ou não querem sair de casa por receio. Apesar das dificuldades, tentamos replicar uma parte das atividades que fazemos presencialmente através do Facebook ou através do Zoom.

“Tentamos promover a interatividade entre eles para conversarem sobre o seu dia ou contarem uma história da sua infância”

São atividades relacionadas com a memória, como por exemplo contar histórias. Essencialmente é promover a interatividade entre eles para conversarem sobre o seu dia, contarem uma história da sua infância, falarem de filmes e recordações. Este grupo já foi a todos os museus e igrejas da zona da Área Metropolitana de Lisboa. São muito ativos e com muitas saídas”.

O diretor-geral explica que “antes da pandemia iniciámos um projeto que tinha a ver com a utilização dos passes em Lisboa. Como só custam 40 euros, todos os meses fazíamos visitas a concelho diferente na Área Metropolitana de Lisboa e explorávamos.

Obviamente que essas atividades são impossíveis de replicar, por isso temos de apostar na parte cognitiva e de socialização. Inicialmente foi uma área que apostamos com muita intensidade pela solidão, mas também de forma a conseguirmos que os idosos tivessem alimentos, medicação, tratamento de roupa. Apesar de não ser o programa com o maior número de clientes e funcionários, e que financeiramente mexe mais, é um programa muito importante para nós”.

“Alguns idosos já tinham inícios de alguma disfunção cognitiva e a pandemia veio deteriorar essas condições”

Mas não há nada como a interação física. “Claro que agora estão mais sós, mais isolados. Estamos a falar de pessoas com uma média 80 anos de idade. Alguns já tinham inícios de alguma disfunção cognitiva e a pandemia veio deteriorar essas condições. É uma área de grande preocupação. Alguns entraram no nosso programa de apoio domiciliário e estamos a arranjar psicólogos para eles. Quem já tinha um quadro clínico, viu sem dúvida esse quadro agravar-se”, referiu.

Contudo, Gonçalo Solla sublinhou que ainda existem programas a decorrer. “Ainda temos aulas de dança com o nosso coreógrafo. Todos os anos temos um espetáculo a partir de uma parceria com a Escola Superior de Dança, em que os alunos finalistas fazem uma coreografia em conjunto com os nossos bailarinos, que são pessoas com mais de 16 anos e com uma deficiência mais profunda.

Agora é um grupo mais reduzido porque tivemos de reorganizar o edifício. Foi necessário criar as tais ‘bolhas’ para não existir o cruzamento de muitos clientes. A fisioterapia também esta aberta, mas de forma muito reduzida, pelo que não podemos atender o número de pessoas que atendíamos anteriormente.

Também temos cá formandos da Escola de Produção e Formação Profissional nas nossas nove áreas diferentes. O nosso edifício é muito grande e a dada altura decidimos que iriamos redistribuir tudo para controlar e garantir a segurança”.

“A Liga não tem condições para fazer testes de despistagem à Covid-19 em massa, mas estamos muito atentos a ver o que está a ser lançado”

Gonçalo Solla refere que “neste momento a Liga não tem condições para fazer testes de despistagem à Covid-19 em massa, mas estamos muito atentos a ver o que está a ser lançado. Aguardamos a aprovação dos novos testes que à partida serão mais baratos.

Ainda não existiram casos cá dentro, mas estamos numa situação que diariamente existe sempre uma pessoa que esteve em contacto com outro indivíduo que testou positivo, ou alguém que está em isolamento. Aparecem muitas situações destas, apesar de não termos nenhum surto, mas isto é fruto do grande investimento que estamos a fazer em termos financeiros e humanos.

“Não estamos a ir atrás das diretrizes da DGS, estamos a ser ainda mais exigentes”

Não estamos a ir atrás das diretrizes da DGS, estamos a ser ainda mais exigentes. Uma grande percentagem dos nossos clientes é de elevado risco e temos pessoas com todo o tipo de problemas de saúde, que no caso de contágio podem sofrer consequências muito graves”.

A Liga também perdeu clientes: “Tínhamos à volta de 600 pessoas por dia. Agora temos entre 300 e 350. Ainda é um número substancial, mas estamos a falar de metade das pessoas. Houve reduções em todos os programas, o que contribuiu também para a redução de clientes”, revelou.

“Sustentamo-nos essencialmente com os nossos meios, mas conseguimos algum apoio de várias entidades particulares. Obtivemos à volta de 15 mil euros em donativos para produtos de proteção individual, o que dá para um mês e meio. Em termos dos nossos financiadores, temos a Segurança Social e o IEFP, que está a comparticipar as despesas, ou seja, marcas e produtos utilizados no seu programa.

A Segurança Social lançou um concurso a que nos candidatámos, onde o máximo elegível eram oito mil euros de apoio, que não chega para um mês. Mas no fundo tudo o que vier é bem-vindo. A situação é muito complicada e a Liga só pode voltar à normalidade “quando acabar a pandemia. Vamos fazer a retoma quando o resto da economia também a fizer, seja lá quando isso for”.

“Houve muita dificuldade em manter os postos de trabalho, mas até agora pagámos todos os vencimentos e não devemos nada a ninguém”

Gonçalo Solla revelou ainda que durante esta fase “houve muita dificuldade em manter os postos de trabalho na Liga, mas até agora pagámos todos os vencimentos e não devemos nada a ninguém, nem colocámos ninguém em layoff.

O nosso grande esforço e prioridade é manter a Liga aberta, as contas em dia, os postos de trabalho e a segurança de todos. Além dos milhares de euros gastos, são muitas horas passadas semanalmente e mensalmente sempre em cima do acontecimento”.

Com este cenário vem também a pressão. “Quando entrei na Liga, em 2012, estávamos muito endividados, com os recursos praticamente no fim. Foram tempos muito duros e de uma grande superação de todos nós, mas nada comparado com que estamos a passar agora. Gerir a Liga em tempos de pandemia traz uma pressão diária muito, muito forte mesmo a todos os níveis: financeira, dos casos de Covid-19, decisões e receios.

“Com a pandemia tivémos de dar passos atrás e voltámos ao ‘modo de sobrevivência’”

Isto porque a pandemia veio acabar com o bom trabalho que estava a ser feito nos últimos oito anos. Já estávamos a pensar em novos investimentos e projetos a médio e longo prazo, porque tínhamos essas condições. Com a pandemia tivémos de dar passos atrás e voltámos ao ‘modo de sobrevivência’”, contou.

Tudo isto torna o futuro incerto e se a situação piorar ainda mais, a Liga poderá não aguentar. “Estamos a trabalhar para que isso não aconteça, e só agora é que alguns dos nossos financiadores nos começam a dar o feedback, para termos noção do que foi financiado antes da pandemia, e com o que podemos contar, ou não, daqui para a frente.

Estamos a preparar o orçamento para o próximo ano e vamos descobrir brevemente quanto tempo vamos aguentar. Se a pandemia estiver como está atualmente, a questão é saber quando é que o dinheiro acaba. Essa foi a primeira pergunta para a qual tentei arranjar resposta quando entrei na Liga em 2012.

“Se há um lado positivo nisto, é o espírito de união e de equipa aqui na Liga, que sai muito reforçado”

No entanto, o diretor-geral não quis deixar de sublinhar que “a pandemia veio revelar que o espírito inovador continua presente na Liga. Em muitas alturas achava-se que a inovação estava adormecida e punha-se em causa alguma mística, que era o ‘espirito de Liga’, que quando acontecia algo, todos se mobilizavam.

Viemos provar que não estamos adormecidos. Tivemos muitas pessoas a mudar de funções durante a pandemia, reforçamos a limpeza e o apoio domiciliário e não houve qualquer queixa. Se há um lado positivo nisto, é o espírito de união e de equipa aqui na Liga, que sai muito reforçado.

Estamos preocupados com o futuro próximo, mas confiantes. A Liga passou por muitas crises e continua cá ao fim de quase 65 anos”, completou.


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