Opinião

Violência Doméstica – há todo um caminho a carecer de ser percorrido!

Uma crónica de Isabel de Almeida

Celebrou-se no pretérito dia 25 de Novembro o Dia Internacional para a Erradicação da violência contra as mulheres, efeméride que nos deve merecer, enquanto sociedade um olhar atento e uma reflexão aturada acerca do flagelo da violência doméstica e das respostas (ou ausência destas) que o nosso país proporciona às vítimas deste crime.

Importa frisar, desde já, que embora exista maior incidência de fenómenos de violência contra as mulheres, em boa verdade as vítimas são também homens, crianças e adolescentes de todos os géneros e idosos sendo o fenómeno transversal a género, idade ou classe social das vítimas e dos agressores.

Para pensarmos na gravidade da situação atentemos no facto de, só neste ano estranho e cruel por todas as razões que sabemos, já contabilizamos 32 vítimas mortais no contexto de violência doméstica, e embora nos assuste pensar em tal facto, estas vítimas mortais são as que comprovadamente foram sinalizadas e enquadradas neste contexto, mas ocorre-me o terrível pensamento de que muitas outras possam ter perecido às mãos dos seus carrascos sem que fosse consciencializado e conhecido o contexto, e assusta pensar que muitas sofreram e sofrem em silêncio, agora ainda mais presas pela dependência económica relativamente aos agressores e por não terem para onde ir sentindo-se perdidas e receando não ter como proporcionar apoio e uma nova vida para si mesmas e para os filhos menores que acabam por ser vítimas adicionais desta tragédia.

A pandemia vem potenciando situações de agressividade, hostilidade e violência extremada quer em contextos familiares quer ainda em contextos sociais mais ou menos alargados, violência esta ainda mais potenciada pela pressão psicológica negativa que abala a sociedade devido à crise pandémica nacional e internacional. Vulgarmente, podemos dizer que se denota que as pessoas estão, gradualmente a “perder os filtros sociais” , pois perante uma ameaça global e insidiosa à vida de cada um a empatia ainda mais se reduz e o outro passa a ser encarado como um “empecilho”, um “concorrente pela sobrevivência”, um “objecto onde pode ser projectada toda a agressividade e revolta perante o que estamos a viver”. Todavia, o gene da violência era já pré-existente, os perfis psicológicos de vítimas e agressores estavam já predispostos numa combinação fatal que faz disparar o gatilho da violência.

É crível que novas variáveis decorrentes da pandemia tenham agravado este fenómeno, assim como é igualmente expectável que muitas situações se mostrem escondidas e existam riscos acrescidos de que possam terminar com o final da escalada em crescendo própria destas situações e já amplamente estudada pela Psicologia com a morte das vítimas.

A verdade é que cabe-nos ter a noção de que em Portugal estamos ainda a anos luz de um sistema de resposta às necessidades das vítimas que se encontre próximo da eficácia desejável. Um dos contextos onde é mais visível o desamparo, impotência e sofrimento continuado de quem tem, ainda assim, a oportunidade de escapar com vida a um agressor (ou agressora, encara-se globalmente o conceito como acima se precisou) é precisamente em sede de processo judicial. Ao longo dos anos tenho acompanhado por dever de ofício diversos processos judiciais relativos ao crime de violência doméstica e, volvidos vinte anos de exercício profissional em termos de mentalidades encontro ainda pelos tribunais uma extrema falta de sensibilidade para analisar e julgar este tipo de processos. Muitas vezes se julga mais a vítima e a sua conduta do que o agressor!

E mais estranho ainda, se poderíamos ser levados a pensar que os profissionais mais jovens (refirmo-me a todos os operadores judiciários desde oficiais de justiça , passando por advogados e magistrados) estariam naturalmente mais treinados e sensibilizados com a necessidade de acautelar minimamente o percurso judicial da vítima, assim como proporcionar a estas as condições desejáveis para a produção de prova, a verdade é que a arrogância e temeridade próprias da juventude muitas vezes (e salvo honrosas excepções) cegam esta clarividência e esta percepção da realidade.

Como em tudo não há fórmulas perfeitas, até porque num mundo perfeito nem existiria nada de negativo, mas ainda assim creio que temos em mãos recursos e conhecimentos que são deixados de fora desta equação do crime de violência doméstica. O caminho teria de englobar uma formação específica obrigatória para quem se visse em funções no acompanhamento deste tipo de processos, sou favorável a uma jurisdição especializada nesta como em muitas outras áreas, outra forma de colmatar esta necessidade seria a assessoria obrigatória dos operadores judiciários por parte de profissionais de áreas como a Psicologia, o Serviço Social e até a Sociologia e a medicina psiquiátrica, pois entendo que a justiça deve começar por reconhecer que o Direito, por si só, e os meros formalismos jurídicos não resolvem tudo (aliás nestes casos muitas vezes nem resolvem nada, deixando crimes impunes ou deixando preparado o contexto ideal para mais tarde e, surgindo novas oportunidades, os agressores lograrem concretizar os seus intentos se começaram por falhar num primeiro momento).

O acompanhamento das vítimas e até dos agressores por profissionais de áreas especializadas, a realização obrigatória de perícias psicológicas e psiquiátricas e da avaliação do risco, o cuidado com e imperatividade com questões tão simples mas tão significativas como o facto de as vítimas (ainda que meramente potenciais) prestarem declarações em audiência de julgamento sem ser na presença física dos agressores na mesma sala, a imperatividade de garantir (não apenas em crimes com contornos de agressões sexuais) a preservação da intimidade da vítima  com limites à publicidade deste tipo de audiência fariam, a meu ver, toda a diferença até em termos de produção de prova.

Se dúvidas houver pensemos no seguinte: uma qualquer vítima de violência ver-se exposta a reviver ( o que é sempre traumático) tudo o que passou na presença do agressor (arguido) e sendo também constrangida a prestar declarações na presença de todo e qualquer estranho que deseje assistir à audiência, que receios, que sentimentos, que angústia, que sofrimento mais está ainda reservado a quem tenha de passar por este novo calvário? E se fosse connosco? E se fosse com alguém muito próximo de nós? (familiar ou amigo, aluno, professor, colega de trabalho?)

E se fosse connosco? É talvez o melhor exercício de auto focagem no problema para que consigamos aquilatar a dureza dos factos. As instituições, embora se desejem imparciais, não podem deixar que a forma se sobreponha à substância, nem devem permitir que cada processo seja apenas um mini-universo que se desenrola dentro de um dossier com uma compilação de dados e provas melhor ou pior coligidas, dossier este ao qual é atribuído um número, número esse para o qual é preciso encontrar agenda para dispensar um pouco de tempo para um trabalho técnico-jurídico feito com maior ou menor sensibilidade e maior ou menor dedicação e motivação. Muitas vezes a justiça recusa-se a descer do seu pedestal até ao nível do comum dos mortais que constituem afinal a sua matéria prima. Não haveria justiça nem sistema judicial sem pessoas, cada uma delas com o seu papel social na trama que tece os fios de cada processo judicial. A verdade é que me parece que em processos de natureza penal, assim como em sede de jurisdição de família e menores, são vidas humanas que estão em causa, naturalmente que todas as causas apenas existem tendo por substrato valores e direitos que se confrontam, e há questões de ordem financeira que bastante repercussões podem ter na própria subsistência (noutro artigo faremos uma análise do mundo do Direito Executivo em Portugal), mas por natureza quando temos uma vítima de crime violento (e quando possam também existir acusações falseadas, não é impossível) é o valor vida e o conceito de humanidade que devem sobrepor-se a tudo o resto e saber articular-se os formalismos técnico-jurídicos com este ponto de partida e não o inverso como vem sucedendo tantas vezes.

A justiça fez-se para os homens e é feita com os homens, e embora seja cómodo, que não nos seja permitido a nenhum de nós – operadores judiciários – despir a humanidade antes que enverguemos o traje profissional, treinemos a pose majestática de “Deuses do Direito” cientes e orgulhosos de toda a nossa sabedoria e que entremos na sala de audiências tomando os respectivos lugares, em especial quando se trata de violência doméstica (e todos os crimes violentos).


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