Opinião

Perplexidades, humanidade e política

A capacidade de nos espantarmos, de ficarmos perplexos perante as realidades com que nos vamos deparando no dia a dia, tendencialmente, deveriam diminuir significativamente com a nossa idade a avançar e também com a nossa inerente experiência de vida. Há inegavelmente todo um saber de experiência feito e o mesmo se pode aferir relativamente à nossa capacidade de encaixe para certas atrocidades a que possamos assistir inadvertidamente. E talvez fruto da pandemia, a loucura, a irracionalidade, a crueldade e a insensibilidade têm tido manifestações ostensivas e muitas vezes assustadoras.

Pessoalmente, a cada dia que penso que já nada me espanta (chego a proclamar esta frase para mim mesma, alto e bom som, talvez numa tentativa vã de me tranquilizar) pois que pouco tempo depois algum evento me deixa perplexa, e quase sempre não pelas melhores razões.

Na mais recente polémica que rodeou as declarações da Ministra da Solidariedade e Segurança Social ao Jornal Expresso não sei o que deva deixar-me mais perplexa, se as declarações em si, que podem ter sido descontextualizadas mas ainda assim não são felizes, se o facto de ser necessário acontecer uma declaração pública de uma figura política com mais elevada responsabilidade neste sentido que pelo menos aparenta desvalorizar o sucedido em termos de falta de cuidados devidos aos utentes de um Lar em Reguengos de Monsaraz para que mais consciências de despertem para uma situação que há longos anos é apanágio de um sistema de solidariedade social que, na maioria dos casos, e por tendência, olha mais para números, papeis, burocracias do que para os seres humanos individualmente considerados com que lida em cada um destes processos administrativos burocráticos relacionados com lares, ou outras valências de apoio social.

Temos um sistema burocratizado e tecnocrata, a legislação é produzida em gabinetes onde essa entidade abstrata e misteriosa que designamos de legislador está tantas vezes e quase sempre muito além e desconhece em absoluto o terreno, a prática o campo onde em concreto se irão aplicar as suas determinações legais.

Deve isso sim espantar-nos, causar-nos uma perplexidade que seja motor para impulsionar mudanças positivas o facto de as instituições se desumanizarem e apenas verem números onde existem seres humanos…

O humanismo, os valores de solidariedade social, o respeito pelos mais frágeis, que incluem, só a título de exemplo os idosos e doentes, as crianças, as vítimas de violência doméstica ou de outros tipos de criminalidade violenta devem ser renovados e incutidos nas gerações mais novas, tal como o respeito pelos próprios pares.

Há anos que idosos são negligenciados nos cuidados que merecem, e nem todos são alvo desta negligência apenas por culpa das famílias, não sejamos hipócritas, todos sabemos que o ritmo e os condicionalismos muito próprios de cada pessoa e das famílias nem sempre se coadunam com a prestação de cuidados directos aos mais frágeis, como os nossos idosos, talvez por ter estudado esta temática do envelhecimento em termos de abordagem pela Psicologia não encaro a institucionalização de idosos como uma demissão de responsabilidades para com os mais velhos, há situações de dependência que não se encaixam nos padrões de vida laboral dos familiares até por razões de sustento de todo o agregado, nem sempre é possível deixar um emprego com horário certo para prestar este tipo de cuidados e também em termos clínicos há circunstâncias de tal forma complexas e que exigem um grau de cuidados e atenção permanentes e até dependente de conhecimentos e técnicas médicas e de enfermagem que não estão ao alcance dos leigos nestes campos do saber.

O que nos cabe a nós, como sociedade, é humanizar, humanizar, humanizar, não só as pessoas mas os legisladores, os decisores políticos e as novas gerações. Urge combater o idadismo, que corresponde à negação e preconceito contra os idosos. Há tanto a aprender com os mais velhos.

Não desculpando o indesculpável, mas os maus tratos, a negligência, a aparente frieza de instituições e seus representantes não será já algo que deve servir de alerta e que nos deve forçar a uma reflexão conjunta para mudar este estado de coisas?

Não devem antes os nossos legisladores, técnicos e políticos saber em concreto o que se passa no terreno? Qual a realidade quanto à qual têm poderes (e deveres) nas mãos?

Sinceramente, muitas vezes a mim o que me espanta é a falta de perplexidade!


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