Opinião

Para ti, Miguel

Uma crónica de Vera Esperança.

Olá, Miguel

Ontem à noite regressámos os três a tua casa. A estrada escura pela qual seguíamos, e que eu queria que não tivesse fim, era afinal e apenas mais uma memória. Entrei na tua casa e a M foi direta ao quarto onde te vi pela última vez. Deitado no chão, já sem vida, mas com o mesmo ar de bem disposto que me permitiu ter a coragem de me aproximar e de te fazer uma festa nessa barba de 2 dias. Contornei o chão onde te encontrei estendido, com medo de te magoar. A M estava desorientada e pegava em sacos de roupa que tínhamos de trazer para Lisboa. Ela ainda não percebeu o que te aconteceu. Passou por cima do tapete onde estiveste deitado. Acho que a M foi de rompante ao quarto para se certificar que era verdade. Depois foi lavar um tacho e andava de um lado para o outro, mas não sabia o que fazia.

Já nessa manhã, quando cheguei, pareceu-me ver-te ao fundo da rua, mas afinal era só o polícia que agora estava à porta do sítio onde eras tu que devias estar. À porta de uma casa que os quatro vimos erguer e onde guardámos os nossos segredos que prometo não revelar. Sabes que ficarão sempre entre nós. Ainda no ano novo mandámos umas privatejokes à mesa e ninguém percebeu. Foi muito engraçado.

Limpei a cozinha. Não ficou como da outra vez, mas dei um jeitinho. Fechei as janelas do vosso quarto. Estava tudo aberto. O F levou o teu computador para o andar de baixo e ficou no chão, junto aos sacos de roupa. Não trouxe os fones que a M te tinha levado à cama de manhã, mas vi as pantufas que te ofereci no anterior natal. E a roupa, toda embrulhada. Caramba Miguel, que desleixado!

Veio-me à lembrança que na última noite do ano quiseste mostrar-me todas as luzes do jardim. Obrigaste-me a dar a volta toda a casa e eu, cheia de frio, fiz-te o favor. Sabia que era importante para ti. Sim, Miguel muitas luzes, e então? Posso ir para dentro? És um tonto. Mas foram elas que nos receberam por entre a chuva assim que abrimos o portão. São tantas!

E os gatos da tua colónia? Não me esqueci deles, estás a ver? Não tiveram medo de mim. Deixei-lhes a comida da lata que estava na despensa e o prato bem cheio de ração. Nunca os tinha visto tão próximos. São lindos. Será pelo facto de andar sempre acompanhada de três cães? Eh, eh.

Os teus pequenos e a M tentam reagir. Eu não lhes disse ainda que a saudade tem tendência para aumentar. Fica outro segredo nosso, embora condenado a ser descoberto. Os teus pais estão a ser acompanhados pela M, que resiste, não sei com que forças. Ainda hoje esteve com eles, depois de ontem termos os três tentado ajudá-los a ultrapassar o inultrapassável.

Gostamos tanto de ti, Miguel.

O F faz-se de forte e não sei o que lhe dizer. Parece nada fazer sentido. Mas já sabes que ele é mesmo assim. Até ensaiei umas frases para lhe dizer, mas não… é melhor não. Parecem ser todas idiotas. Está destroçado, mas é como se nada fosse. Perdeu um irmão. E eu também. Hoje pedi-lhe um abraço. E ele apertou-me com força. O mesmo abraço que a M e os teus filhos sempre terão da nossa parte.

O ano novo era apenas mais uma desculpa para estarmos juntos rodeados de comida que sobraria por dias. Nunca dávamos pelo passar da meia-noite, lembras-te? Mas desta vez foi demais – só fizemos o brinde no dia 1, já de noite, e recebi de ti o meu primeiro beijo do ano. Na testa. E disse-te, não foi, disse-te – Obrigada Miguel – foi o meu primeiro beijo de 2021. E tu sorriste e fizeste-me uma festa.

Esse beijo vai ficar para sempre comigo, tal como os nossos segredos, a minha admiração e a tal saudade, que sabemos ser infinitivamente crescente.

Oh, Miguel,gostamos tanto de ti…

Em memória de Miguel Augusto

31 de maio de 1968

25 de janeiro de2021


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