Opinião

Os vírus de sempre

Acerta quem associar este tema ao eterno feminino com que Johann W. Goethe encerra o seu Fausto com o Chorus Mysticus precisamente antes do finis

 o eterno-feminino

atrai-nos para si.

Não parece vir a propósito em tempo pascal, mas o certo é que não deixa de ser uma questão de morte e ressurreição.

1



Há mais de 100 mil anos, desde que o homo sapiens pulverizou os incipientes humanóides anteriores, que não se conhece outra forma de levar a humanidade ao infinito senão através da função reprodutora.

Embora se conheçam os perigos que sempre a acompanham, esta não só não se extinguirá como nem sequer implica ter de abdicar do prazer e é aliás por isso que se lhe agrega o verbo comer ditado pela própria natureza.

Apesar de vulneráveis ao marketing ou à propaganda, é bom que se recorde que os melhores alimentos são justamente os que podem apodrecer.

Os austeros calvinistas é que sempre defenderam que comer com prazer é pecaminoso e já se sabe que há pessoas para quem o corpo é um problema, esquecendo-se de que para aí 2/3 são água e 90% micróbios que também precisam de quem trate deles.

Não obstante os riscos e a paixão avassaladora ser tão ilusória como efémero é o próprio amor, é inútil dissociar a luxúria da multiplicação da espécie.

2

Não deixando de reconhecer que eros convive com tanatos, Rosa Montero acha o assunto tão imenso como o oceano e reflecte sobre ele mais uma vez no EP dominical de precisamente há 6 anos.

Cita Nietzsche de que o sexo é o recurso da natureza para evitar a extinção e, inspirada por esta alteração perfumada e sanguínea da primavera e o sapateado permanente das células latindo nas veias como um despertador antigo, sente infinito o impulso orgânico de perpetuação genética que subjaz ao enlace dos corpos em todas as acepções da locução.

Depois, vai beber na fonte do primeiro volume Chez Swann de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, uma genial e pura radiografia da paixão.

O adolescente vislumbra à distância pela primeira vez a miúda dos seus sonhos: uma lourinha onde brilhavam olhos negros, mas que ele durante muito tempo imaginou azuis só porque ela era loura, pelo que sem essa surpreendente intensidade negra nunca ele se teria apaixonado tanto como se enamorou e sobretudo dos seus olhos azuis.

Ainda que em contexto apenas próximo mas também com inegável interesse para a causa, a grande escritora espanhola podia ter trazido à colação outro trecho igualmente sugestivo da obra.

O rapaz dorme no quarto de cima e sabe que invariavelmente todas as noites a mãe sobe as escadas e lhe vai dar o beijo de despedida antes de descer para o seu próprio quarto, embora por vezes demore mais a vir quando esteve a atender os convidados no salão de baixo.

Só que sendo terno o beijo é rápido e esgota-se num instante, pelo que o mais animador e caloroso é aquele longo período de excitação e expectativa em que falta muito tempo para ele e que alimenta ainda mais a sua alma.

3

Há na Austrália o antequino de rabo negro que é um pequeno marsupial semelhante a um rato e que amadurece sexualmente ali entre os 8 e os 11 meses.

O problema é que a partir de então ele é chamado a duro exercício reprodutor, que chega a ocupá-lo 14 horas seguidas sem o mais leve hiato nem a mínima solução de continuidade.

Cumprida a missão a contento, o pobre aspirava legitimamente a uma pausa reconfortante como repouso do herói.

Nada disso: enquanto estava no palco, uma fêmea assistia ao acto e impaciente por a breve trecho ir ocupar o lugar da cliente então em actividade, pelo que a maratona regressa ao cenário sem qualquer intervalo e por mais umas 14 horas consecutivas.

O resultado está à vista: atormentado e desprovido de defesas, esgotantemente ocupado naquele imperativo urgente de uma operação interminável, o infeliz não se alimenta, fica escanzelado, refém de feridas e infecções e sucumbe antes de completar um ano de vida.

Dito isto, pergunta-se se o ratinho tem salvação e a resposta só pode ser a de que claro que tem.

É quando é capturado e fica assim liberto daquela pesada missão, sossegadamente entretido na toca e todo contente com a sua inocência.

4

Não há que escamotear os flagelos que podem coabitar com uma renovação dos genes realmente susceptível de pôr o triunfo a conviver com a dor e a geração dita do Maio de 68 ainda se recorda daquelas inflamações bruscas que só o Britacil como antibiótico de largo espectro lograva sarar.

A primeira peste de que há registo neste domínio foi a sífilis, que se impõs exactamente pelo domínio de uns sobre outros.

Essa avariose venérea causada por um protozoário impronunciável terá sido exportada para a parte central da América pelos colonizadores espanhóis, que com ela dizimaram tribos inteiras ou quase e na ordem de centenas de milhares de autóctones.

Os indígenas ou nativos não os deviam receber com grande entusiasmo, cientes de que esse seu novo mundo segundo os europeus era preferível ao velho que estes traziam.

A tísica ou tuberculose do século XIX continua hoje a ser a pior praga, produzindo mais afectados que a própria malária.

Entretanto e aparentemente com mais controlo, a sida do século XX não terá deixado de nos levar seres irrepetíveis como v.g na música o nosso fabuloso António Variações ou esse insuperável anglo-saxónico F. Mercury dos Queen.

5



A actual pandemia tem uma génese diferente, mas não deixa de ser um mal constrangedor e dramático que tem mobilizado com um espírito de ingente sacrifício gente de extrema generosidade para obviar ou reduzir o sofrimento alheio.

Mas sabe-se que não há mal que sempre dure nem tenha o anverso e o reverso.

Evidentemente com carácter geral, foi apurado o sentido de apoio ou solidariedade, diminuiu a poluição, há mais tempo para a arrumação e a meditação, regressou o silêncio ou o sossego que andava arredio e muita gente enfim se quedou no oásis, liberto daquele fardo pesado como o do antequino quando apanhado.

6

Ali por 1950 no México, o presidente Cárdenas decidiu expropriar centenas de hectares e colocou os leprosos do país gerindo-se a si próprios nessa granja, dotada de clínica de tratamento ambulatório, cinema, escola, lojas, teatro e um longo rol de coisas parecidas onde os enfermos bailavam, dançavam, estudavam, liam, recitavam, representavam e riam, chegando mesmo a haver casamentos de que nasceram bebés.

No final da década a medicina avançou o suficiente para os ir curando, ainda que com mazelas visíveis e pondo em casa, ficando o campo gradualmente abandonado ou deserto.

Há uns anos, um jornalista resolveu entrevistar alguns sobreviventes, perguntando-lhes se tinham saudades e eles em uníssono

Temos saudades do tempo em que estávamos doentes !

Não há que subestimar uma situação terrível e tremenda como a actual que agita e sacode económica, higio-sanitária e psicologicamente milhares de pessoas, mas crê-se e mesmo residualmente, que ainda vai haver muita gente a sentir saudades deste presente.

Vai uma aposta?


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