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«Os autistas não têm respostas na península de Setúbal»

“É uma angústia, o que é que vou fazer quando o meu filho chegar aos 18 anos? Vou para casa, e deixo de trabalhar?”; “O que vai ser dele quando eu e o pai não estivermos cá?”. Estas são as interrogações com que pais e mães de crianças com necessidades especiais se deparam todos os dias.

Mas a situação agrava-se ainda mais quando se tratam de jovens autistas para quem, após os 18 anos de idade, não existem respostas sociais, e aguardam em listas de espera para entrar em Centros de Actividades Ocupacionais (CAO) por vezes durante anos, além da falta de espaços de acolhimento para os que perdem as suas famílias.

Resposta social através de CAO e lar

Formada por cinco mães de crianças autistas residentes no distrito de Setúbal, cuidadoras informais, a Universo Autista – Associação para Jovens e Adultos surgiu em Outubro do ano passado, tem sede no Pinhal de Frades, Seixal, mas pretende ser uma ‘associação peninsular’ para dar resposta aos jovens autistas do distrito de Setúbal a partir dos 16/18 anos, idade em que terminam a escolaridade obrigatória e que não possuem competências para o mundo do trabalho ou para prosseguir estudos.”

Carla Franco, Elisabete Ferreira e Isabel Batista apresentaram este projecto ao Diário do Distrito.

A Universo Autista pretende criar uma resposta de CAO adequada à problemática do Autismo na península de Setúbal “e esta é a nossa prioridade de forma a dar resposta aos jovens que completaram 18 anos e adultos, porque eles vão ficando adultos, os pais vão envelhecendo e precisamos de respirar e ficar descansados em como os nossos filhos vão ser apoiados no futuro”, explicou Carla Franco.

O maior problema para estes pais coloca-se a partir dos 16/18 anos, “quando chegam ao final da escolaridade obrigatória, e acabam por ter de ir para casa, onde nem sempre têm pessoas que lhes possam dar o estímulo de que necessitam” frisou Carla Franco, cujo filho frequenta a valência educativa de uma IPSS no Barreiro, quando completar 18 anos, não tem vaga no CAO nessa IPSS, “mas só vai ter poder ficar ali até 2020, porque estão lotados e com listas de espera para outros utentes, e embora neste CAO algumas pessoas já ultrapassaram os 60 anos, porque felizmente a esperança de vida aumentou e as pessoas com deficiência têm atualmente um acompanhamento médico e cuidados que não tinham há 20 anos atrás, o que aumenta a sua esperança de vida.

E os jovens têm de sair ao chegar à idade limite e ficar novamente em lista de espera, que pode ser de anos, e no caso do Barreiro já tem uma longa lista de espera de jovens e adultos, que a cada ano que passa aumenta, devido à falta de vagas.”

Até aos 18 anos, as crianças autistas estão sob a responsabilidade do ministério da Educação mas quando chegam à maioridade, passam para a competência do IEFP, os que conseguem trabalhar, mas a maioria está sob a alçada da Segurança Social, “que tem de pagar mais de 510 euros por mês para manter o utente no CAO, ao passo que se ele estiver em casa, pagam-lhe uma reforma que não chega aos 300 euros, passando o encargo para os pais” referiu Elisabete Ferreira.

As respostas sociais dividem-se em CAO, Lares Sociais e Residências Autónomas, destinadas a jovens e adultos “que podem fazer a sua vida e apenas vão dormir a estes espaços, mas funcionam sobretudo para a doença mental e não para a deficiência mental. Ou seja, pessoas com doenças crónicas mas que podem fazer a sua vida normal com tratamento, e que não têm déficit cognitivo. O que não é o caso dos autistas.

E para esses equipamentos, os requisitos não são tão ‘apertados’ ao passo que em projectos relacionados com as deficiências mentais, exigem preciosismos praticamente ‘do arco da velha’, e por causa disso muitas das vezes as pessoas desistem” criticou Elisabete Ferreira.

“Se há capital privado, os projectos podem avançar, com criação de lares e outros equipamentos, mas quando não existem verbas temos de nos submeter à Segurança Social, que é responsável por todos esses equipamentos em Portugal, mas infelizmente as coisas demoram décadas, embora seja um direito nosso essa resposta por parte do Estado, porque pagamos os nossos impostos e estas crianças não escolheram nascer assim.

No caso de pessoas autistas que percam as suas famílias “é accionado, a nível nacional, uma tentativa de resposta para o enviar para onde possa existir uma vaga, mas pode ir parar aos Açores ou para o norte do país e sabe-se lá para que instituição…”

Universo Autista pretende dar respostas
na península de Setúbal

Em processo de se formarem como IPSS, já entraram em contacto com autarquias, como a Câmara Municipal do Montijo que disponibilizou uma sala para atendimento aos pais, e o mesmo fará a Junta de Freguesia de Fernão Ferro “embora esse não seja o nosso principal foco até porque há mais entidades a prestar essas informações. Mas numa primeira fase iremos fazer esse atendimento, que nos permitirá também fazer um levantamento das necessidades e de quantas famílias têm estes jovens autistas em casa, para podermos depois mostrar os números relativos à península de Setúbal (de Alcochete a Setúbal, porque não temos meios de estar em todo o distrito) e as suas necessidades, e de seguida partirmos para a implementação de um CAO e um lar neste território, porque não existe actualmente.”

Mas este será um objectivo com algumas dificuldades, “porque o espaço em si tem de responder a várias regras, quer legais quer ainda devido à natureza dos autistas,  jovens e adultos sem limitações motoras, que necessitam de espaço para descarregar toda a sua energia e muitos deles com boas competências motoras, requerendo espaço exterior para manter e desenvolver essas mesmas competências e outras socialmente úteis. Espaço exterior é importante numa resposta social de CAO para a problemática do autismo.”

Da parte da Câmara Municipal do Seixal temos estado em conversações para nos encontrarem um terreno para a futura construção do CAO e Lar ou a comparticipar na renda de um espaço que encontrássemos e que servisse para esse propósito”, referiu Elisabete Ferreira.

“Já encontrámos no concelho do Seixal um um equipamento com espaço exterior que seria o ideal para instalar o nosso CAO, mas que foi reprovada por parte da técnica da Segurança Social a quem pedimos para o visitar, porque não cumpria com os definidos no Despacho 52/SESS/90. Por exemplo, tinha de ter um andar só com salas para técnicos (que tínhamos de construir neste espaço) e o pé direito da casa tem de ter determinadas medidas, a garagem não podia ser aproveitada para nada…” explicou Elisabete Ferreira.

“Para podermos fazer alguma coisa desse espaço consoante as exigências da Segurança Social, seria preciso cerca de meio milhão de euros. Disseram-nos que ainda há uns ‘pozinhos’ a serem atribuídos e está para sair um novo PARES para reabilitação de equipamentos, a que podem concorrer as IPSS, mas ainda estamos a iniciar esse processo, que nem sempre é célere, e este projecto será algo para toda a nossa vida, primeiro construindo o equipamento e depois mantendo-o.

As despesas serão assumidas pela Segurança Social que financia cada utente a 510 euros e a este valor é acrescentado a mensalidade que cada família comparticipa segundo a tabela de escalões de irs. E é a partir desse ‘bolo’ que cada IPSS pode ver quantos técnicos pode contratar e o tipo de contratos pode fazer. Ou seja, temos de ter o equipamento montado, ter os utentes inscritos e só depois é que podemos contratar técnicos.

E ainda pode acontecer termos espaço para 30 utentes, mas a Segurança Social apenas autorizar 15, porque ‘não têm dinheiro’ para financiar os restantes, e depois avançam com financiamento anual apenas para mais 2… e até que os 30 utentes, com os quais a IPSS contava, estejam todos inseridos, podem decorrer dez anos. E nunca serão 30, porque a Segurança Social apenas financia para 28 utentes e meio…”

A esperança agora centra-se na possibilidade de cedência de um terreno, “mas neste momento andamos sobretudo a mendigar às entidades aquilo que possamos conseguir”, frisou Carla Franco.

Outro problema com que as famílias de autistas se deparam é a total ausência de lares residenciais. “Existem lares para idosos, e no caso os cuidadores informais podem até acionar o apoio ao cuidador, pagando um valor determinado consoante o seu IRS, para poder entregar essa pessoa durante um mês, a uma entidade e ter esse período para descansar.

No caso das deficiências mentais, isso não existe.

Depois vemos serem construídos pavilhões desportivos, centros culturais e outros equipamentos, que sim, fazem falta à população, mas depois não há dinheiro para os equipamentos para dar resposta a estes jovens e às suas famílias, que não têm rigorosamente nada. É como se não fossem cidadãos de direito.”

Por sua vez, são inúmeros os contactos de pais com a Associação à procura de respostas e soluções para os seus filhos. “Quando criámos a página web e o perfil do Facebook, recebemos uma chuva de telefonemas de pais a perguntar quando teríamos o espaço pronto porque também não sabem onde os podem deixar, têm de trabalhar e não têm soluções.

Mas por enquanto apenas podemos dar informações sobre os passos que podem fazer em relação aos filhos mas nada de resposta concreta, o que os deixa muito desiludidos.”

E até os parcos apoios que as famílias recebem por parte da Segurança Social, são por vezes alvo de situações que seriam caricatas, se não fossem dramáticas.

É a situação porque passa o filho de Isabel Batista, com 19 anos, que depois de frequentar a escolaridade obrigatória até aos 18 anos, na valência socio educativa de uma IPSS no Barreiro, ficou sem resposta, pois não há vagas de CAO nessa IPSS.

“Tenho momentos de perda de esperança porque tenho muito receio que o meu filho fique cá sem mim, e é muito triste como pais encarar algo assim. Agora está em casa com o meu marido, que está reformado e pode estar com ele, mas é um enorme desgaste.

Recebe uma Prestação Social para a Inclusão, composta por uma componente base e eventualmente um Complemento, calculado com base nos rendimentos dos pais, de cerca de 270 euros. Quando ele foi para casa, pedi o complemento, para ver se tinha direito. Eis senão que vou ver na Segurança Social Direta, e já recebi a carta em papel, informando-me que o meu pedido foi ‘deferido’ e que tenho direito a um complemento no valor de Zero (0) euros…”

Autismo ainda é um mistério,
mas está a aumentar

“O especto do autismo é muito abrangente. Há jovens que são autónomos e até conseguem emprego, com certas limitações, mas depois há outras como o meu filho que tem 16 anos e nem fala, e são completamente dependentes.

Não há dois autistas iguais, e cada vez parece-me estar a surgir mais crianças com este problema, penso mesmo que pode vir a ser a pandemia do sec. XXI. Pensa-se que em cada 100 crianças, 4 são diagnosticadas como autistas, e este manifesta-se 4 vezes mais em rapazes que em raparigas. Não se sabe ainda qual a origem, pelo que nem os testes uterinos conseguem detectar alguma anomalia, como acontece noutras patologias, sendo que apenas perto dos 18 meses de vida é possível obter esse diagnóstico” segundo Elisabete Ferreira.

É nos primeiros anos de vida que a situação das crianças autistas pode ser alterada através de estimulação, sendo que os especialistas referem que o cérebro humano desenvolve-se nos primeiros 7 anos de vida, e em cada 100 crianças autistas, entre 4 a 5 conseguem recuperar uma vida quase normal.

“Por isso há também muita oferta de terapias para crianças autistas, como a hipoterapia, psicomotricidade, mas são todas pagas. O meu filho fez ABA – Applied Behavior Analysis, uma terapia intensiva de quatro a seis horas por dia, e na altura pagava 1270 euros por mês e o Estado não comparticipa”, referiu Carla Franco.

Outra queixa dos progenitores prende-se com o facto de “o Estado querer que estas crianças sejam integradas no sistema de ensino regular, porque fica mais barato ter essas crianças nas escolas. Mas a escola pública ainda não tem os recursos necessários dar resposta adequada a crianças com um autismo mais severo. Faltam recursos e técnicos com mais horas para acompanhamento terapêutico, e as professoras não lhes podem dar total atenção e essa criança até pode destabilizar os outros meninos” mencionou Elisabete Ferreira.

“Neste momento temos jovens autistas na universidade, mas são casos complicados devido à adaptação que é necessária, embora alguns sejam extraordinariamente inteligentes, tornando-se peritos em determinadas áreas.”

A falta de respostas está também ligada ao aumento da esperança média de vida dos autistas, que no passado era de cerca de 35 anos “mas agora é muito mais elevada. São pessoas muito saudáveis, a quem os pais também protegem porque, por exemplo, não lhes permitimos comer doces porque há o receio da sua reação se tiverem dores de dentes, e até a medicação não tem efeitos secundários nefastos. Isto leva a que os poucos equipamentos que os recebem além dos 18 anos, fiquem cada vez ocupados pelos mesmos utentes durante mais tempo” explicou Carla Franco.

E a conversa termina um pouco na forma como começou.

“Só quem lida com estas situações diariamente é que sabe as lutas que mantemos, o desespero e a falta de esperança. São desilusões atrás de desilusões, porque não conseguimos obter respostas do Estado para os nossos filhos, e temos sempre a ansiedade de saber quem irá cuidar deles quando nós não pudermos”, concluiu Isabel Batista.


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