Opinião

O velho, o rio e a ortografia

O velho, como já referi, está sentado no banco. Fita a imensidão azul que é o rio e o seu horizonte que descobre este céu nublado que cobre a cidade desde ontem. A pessoa em questão, presumivelmente com receio que fizesse mais frio do que aquele que está, ou mesmo com medo que chovesse, trouxe um casaco preto comprido denotadamente experiente no combate às duras condições imprevisíveis da Natureza. O casaco está algo gasto, porém é aquele gasto que, de facto, confere um caráter distinto e até uma certa autoridade.

Talvez devido à sagacidade comum aos velhos sábios (se é que este é sábio), trouxe ainda um guarda chuva verde escuro (novo, ao que parece) bastante bem enrolado. Já os poucos jovens que por aqui andam esquecem (ou fazem por esquecer) as consequências da rebeldia perante o mau tempo, visto que as suas indumentárias não são, propriamente, aquilo a que chamariamos de “agasalho”.

Não me excluo da crítica. As folhas das árvores batem umas nas outras fazendo aquele barulho típico que anuncia ventania óbvia, o mar está ligeiramente picado devido ao vento que se faz sentir, o céu nublado parece não querer trazer a chuva consigo (coisa boa para os jovens despreocupados, para o velho, indiferente) e a atmosfera do parque é, por sua vez, bastante prazenteira, ao contrário do que se podia pensar em função do clima ambíguo. Nada disto distrai o velho.

O rio parece ser a sua única preocupação, de momento. Ou então, contrariamente a isto, neste preciso instante, a sua cabeça divaga por onde tem de divagar e o rio é apenas a tela que esconde pensamentos preocupados. Talvez (e só talvez) seja essa a razão da sua vinda até ao jardim, mais propriamente àquele banco com vista para o rio. Ou talvez não. É possível que esteja meramente a contemplar o brando (que hoje não está brando) rio que separa uma terra de outra, sendo que a outra se vê ao longe, como eu o vejo a ele. O que nos separa são algumas árvores, arbustos, relva, alguns passadiços de madeira daqueles que também estão à entrada das praias e as tais pessoas e animais que por aqui andam e não o vêem, tal como ele não me vê a mim.

O que nos vê são estas palavras, valem o que valem. Provavelmente ele nunca as lerá e mesmo que as leia, possivelmente não perceberá que falo dele. Ainda bem. Retira agora do bolso um cigarro peculiarmente comprido (provavelmento feito pelo próprio) e acende-o com um fósforo. Estranha opção. Fuma. Tabaqueia.

Não acredito que pense no quão mal lhe faz aquele cigarro, ainda para mais com a idade que aparenta ter. Quem sabe, é por isso mesmo que fuma. Seria até picaresco pensar que, por pura burla que tenta implicar à vida, tenha começado a fumar já enquanto velho. Quase como quem diz: – O que é que tenho a perder? Este pulmão saudável não me valerá de nada na repartição da minha herança por aquela gente toda. Se, porventura, necessitarem de um pulmão, o meu já não fará parte da lista dos “bons” pulmões. Desculpem. Por outro lado, pode ter começado a fumar aos 14 e desde aí nunca parou. Se for esse o caso, o seu pulmão estará mais gasto e escuro que o casaco preto comprido e coçado que trouxe vestido.

O parque começa agora a ficar mais cheio. Aproxima-se a hora do almoço e, como é costume, alguns dos inúmeros conterrâneos que trabalham vêm para este mesmo jardim disfrutar do almoço que preparam em casa. Outros, comem qualquer coisa neste café onde estou. O velho, quiçá por pressentir que o movimento aumenta e a calmia vai-se dissipando, acende outro cigarro pois o último já foi totalmente fumado. Levanta-se. Caminha de forma vagarosa para a saída como se não fosse possível de outra maneira. As saídas (despedidas, fugas, fins) têm destas coisas.

O ato de sair não é linear no que diz respeito à emoção ou sensação que lhe é associada em cada e diferente momento. Podemos supor que, se veio até ao jardim para pensar em questões complicadas da sua vida, pode ser que ao sair daqui saia feliz, já que não pensará mais nesses assuntos até aqui voltar (se é para aqui que vem sempre que quer cogitar acerca de tais assuntos, claro está). Poderá ainda regressar todos os dias ao jardim para que não tenha de se queixar a ninguém dos seus problemas. Fernando Pessoa escreveu: “ (…) E é porque já não me queixo/ Que as queixas não têm fim(…)”.

O exemplo pessoano pode, eventualmente, servir a este velho. Alberto Pereira, num dos seus poemas escreveu a seguinte frase: “ Os homens não sabem que as rugas começam na garganta”. Pelos vistos, este sabe. Poupa as palavras queixosas, poupa os outros de as ouvirem e gasta-se a si próprio. Não sei qual será a consequência de poupar a garganta para não ter rugas, no entanto, se o silêncio for a sua solução, é bem possível que pague a conta de outra forma. Porventura, a sua conta será precisamente ser poupado. Não ser ouvido. Cada um, neste caso, escolhe o que tem a pagar.

Mas não é o silêncio tão caro? Para uns si, para outros não. O silêncio é para aqueles que sabem estar calados consigo mesmos ao mesmo tempo que tanto dizem e pensam. Mais cedo ou mais tarde, o lugar do velho será ocupado com outro propósito. Todavia, naqueles instantes, serviu para carregar o peso daquele homem de idade avançada que fitava o mar e pensava. O banco servirá agora para outras pessoas fazerem o que bem entederem enquanto estão sentadas.

Mudará a pessoa, não mudará o banco. Por onde passamos passam também as nossas intenções. Eu sairei como entrei. De caderno e caneta em mão, andando a bom ritmo, talvez fite também eu o rio por alguns momentos enquanto caminho até à saída com a intenção de escrever isto. Provavelmente, não voltarei a encontrar este velho. A cidade é grande e recheada de pessoas.

No entanto, por breves instantes, eu de caderno e caneta em mãos e ele com a sua calma presença presenciando o mar, a ortografia apresentou-nos. “Sim, porque a ortografia também é gente” (Bernardo Soares). Por breves instantes conhecemo-nos sem falar.


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