Opinião

Mãe Preta Mané e Seus Filhos

Um artigo de opinião de Rita Silva, sobre a forma como as entidades portuguesas retiram das suas familias e encaminham crianças para adopção.

Conheci Mãe Preta Mané há dois anos atrás. Sentamo-nos sobre um banco de jardim, localizado em frente à Praça de Touros, no Campo Pequeno, em Lisboa. Mãe Preta Mané contou-me que integrava o corpo da guarda da Presidência da Guiné-Bissau antes de vir para Portugal.

Contou-me que desembarcara com dois dos seus filhos neste território, em 2004, ano registado nas Cédulas de inscrição consular da Embaixada da República da Guiné-Bissau, conforme pude constatar.

A família estava abrangida através de um Acordo de Saúde entre Portugal e a Guiné-Bissau. Embora a Embaixada da Guiné-Bissau tenha apresentado formalmente um documento perante o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras onde afirmava que disponibilizaria a subsistência da família durante o tempo em que estariam temporariamente em Portugal, o facto é que não o fizera.

Diante das adversidades, Mãe Preta Mané teve que ir vender milho assado para conseguir alimentar a si própria e aos seus dois filhos.

Mas foi acusada pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Família e Menores de Sintra, de que deixava os filhos com fome e sozinhos, durante o dia e durante a noite. Foi acusada de que se tentou aproveitar do protocolo de saúde estabelecido entre os dois países, para pedir autorização de residência temporária em Portugal!

Entre outras acusações desprovidas de coerência e de factos comprovados, Mãe Preta Mané e seus dois filhos tornaram-se vítimas de violências institucionais e reféns deste território, uma vez que suas vozes não foram ouvidas devidamente e que não mais puderam regressar à família nuclear deles na Guiné-Bissau.

A criança menor, que tinha vínculos afetivos com a sua Mãe e com a sua irmã mais velha, foi encaminhada para adoção em 2009, sem o consentimento da sua Mãe e sem o conhecimento da sua irmã mais velha.

Mãe Preta Mané tinha arranjado um emprego com contrato, uma casa com dois quartos, tal como impuseram. Reestruturou-se afetivamente e engravidou, queria reconstruir a sua família.

Contou-me que no Tribunal transmitiram-lhe que o facto de ter engravidado pela terceira vez significava que ela não queria ter os outros dois filhos de volta. As crianças não retornaram para o seio da sua família.

A filha mais velha de Mãe Preta Mané tornou-se uma mulher adulta longe da sua Mãe. Ela contou-me noutro dia sobre o desespero que sentiu quando foi visitar o irmão à instituição onde ele estava e ouviu de uma Sra. funcionária de que a partir daquele dia ela teria que pensar que o irmão tinha morrido, pois não mais o veria.

Ao vermos as fotografias das crianças quando cá chegaram, constatamos que estavam felizes, em paz. Viviam numa casa pequenina decerto, mas tinham o afeto de Mãe. Afeto de irmã. Afeto de irmão.

A tristeza que vejo hoje n’alma de Mãe Preta Mané, quem irá curar?

No ano passado, Mãe Preta Mané esteve novamente no Tribunal de Família e Menores, por causa do seu filho caçula. Perguntaram à criança se a sua Mãe era “limpinha” lá por casa. Resolveram não “estigmatizar” a Mãe, porque pelo facto de ter tido filhos institucionalizados no passado não quereria dizer que fosse má mãe.

Contra as Mães Pretas tecem as mais levianas acusações: são sujas, são maltratadoras de crianças, utilizam drogas, são autoritárias, são preguiçosas, são mentirosas… ou seja, não prestam para serem Mães, uma vez que a Mãe Preta no passado não servia para criar os seus próprios filhos mas sim, para criar os filhos das mulheres abastadas.

No passado as crianças escravas eram coisas, mercadorias, brinquedos. Atualmente embora as crianças sejam consideradas enquanto sujeitos detentores de direitos, seus direitos consagrados na CDC, estão constantemente a ser desrespeitados. Muitas crianças estão a ser tornadas mercadorias, estão a perder o direito às suas famílias biológicas, estão a ser criminalizadas por serem pobres. Continuamos a reproduzir violências.

Não reconhecemos que somos violentos enquanto sociedade. Não refletimos sobre as consequências que tais práticas racistas e fascistas provocam na saúde psíquica e física das vítimas, sejam elas mulheres e/ou crianças.

Como podemos co-criar uma coesão social potencializadora de bem-estar, de dignificação da pessoa humana, quando sabemos empiricamente que mulheres e crianças pobres e negras, pobres e brancas, pobres e migrantes, pobres e ciganas, vítimas ou não de violências domésticas, vêm sendo constantemente violentadas institucionalmente, sendo discriminadas e separadas físico e emocionalmente?

A qualquer momento podemos deixar de existir. Importante que não nos esqueçamos deste facto. Dado que ao que parece, esquecemo-nos sempre e todas as barbaridades parecem ser plausíveis, normativas.

Oxalá Mãe Preta Mané, sua filha e seu filho caçula reencontrem o ser humano, ente querido, outrora usurpado. Oxalá se esclareçam as cabeças dos homens e das mulheres que lidam com as leis, com os veredictos, com as políticas, com os estudos, com vidas. Oxalá tenhamos mais humanos a preferir caminhos de Fraternidade e de Amor, nestes tempos de desassossego.


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