Opinião

Justiça – a pretensa “normalidade” do “Faz de Conta”!

Na semana que agora termina, e em concreto na passada quarta-feira dia 3 de Junho deste ano fatídico de 2020, entrou em vigor a legislação que, entre outras medidas, fez retomar o respectivo curso de prazos judiciais suspensos (mas não muito…) e que impõe como norma a realização presencial  de diligências judiciais, desde que asseguradas as normas de segurança em termos de saúde pública propostas pela Direcção Geral de Saúde no interior dos nossos Tribunais.

Ora, respeitando todos os meus Colegas Advogados e restantes operadores judiciários com opinião diversa, a meu ver este pretenso e forçado “regresso à normalidade” no sector da Justiça é um mero exercício de “Faz de Conta” não isento de sérios riscos para a saúde de todos os que, por dever de ofício ou por força de outras circunstâncias, têm de frequentar os Tribunais Portugueses.

Diga-se, em abono da verdade, e para registo e memória futura, que o tão propalado desconfinamento não se mostra clarificado nem detalhado de forma adequada ao meio judicial, o que promove sérias desigualdades e confere aos operadores uma disparidade de critérios, entendimentos e actuações que desvirtua a própria essência da palavra Justiça e daquilo que esta simbolicamente representa perante todos aqueles que desejam a sua realização em relação a assuntos do seu interesse.

Reconheço que estar parado, e isto em qualquer sector de actividade, é prejudicial, causa sérios danos, afecta também e necessariamente o sistema económico e a vida de cidadãos e trabalhadores da Justiça e abala o sistema no seu todo. Soluções mágicas também não as há, mas  convenhamos que desigualdades, riscos e o sempre presente critério da redução de custos para o Estado quando estão em causa bens essenciais como a saúde dos seus funcionários e dos cidadãos utentes dos serviços não me parece ser o critério preponderante a adoptar.

Sou Advogada e, como tantos outros cidadãos, não me sinto segura nem confortável a trabalhar dentro de um Tribunal nos tempos que correm, em especial quando tenho de o fazer , por ironia do destino, numa das regiões do país que surge agora na liderança em termos de casos de infecção por Covid-19 e que está limitada em tantos outros sectores em sede de desconfinamento, falo da região de Lisboa e Vale do Tejo, onde diariamente os números estão bem longe de nos deixar tranquilos.

Por relatos a que venho tendo acesso através de Colegas de profissão, pela análise crítica de notícias que vêm a lume nos media, e ainda pela minha própria percepção da realidade circundante ao mover-me no terreno, tudo aponta para que esta reabertura forçada dos Tribunais e que a regra das diligências presenciais vá ter elevados custos em termos humanos e sociais. Assumamos de uma vez por todas que os nossos tribunais apresentam idiossincrasias entre si, há novos edifícios construídos de raiz que não reúnem as condições minimamente desejáveis em termos de condições de trabalho em termos de segurança e protecção da saúde nos tempos que correm. Há salas interiores, sem ventilação natural portanto e dependentes de ar condicionado cujo uso não me parece, de todo, sensato. As salas dos edifícios mais recentes são, na sua maioria, de pequena ou média dimensão e não asseguram, pelo menos com a disposição usual das pessoas em sala, das distâncias desejáveis de segurança, além de que, devido às reduzidas áreas, nem sequer é aconselhável, em bom rigor, que as mesmas tenham a lotação de pessoas em simultâneo que tantas e tantas vezes é necessário acolher para realizar diligências. Precisamos de ponderar seriamente espaços e/ou meios alternativos. E nem se diga que um vídeo limita a análise de micro-expressões de testemunhas, pois uma máscara nem sequer permite ver expressão alguma em metade do rosto.

Surgem também relatos recentes, preocupantes e assustadoramente reais de infecções que começam a acometer operadores da Justiça (esta mesma semana vieram a lume alguns exemplos, e ainda ontem – sexta-feira, houve necessidade de encerrar instalações do Tribunal de Pequena Instância Criminal no Campus da Justiça na Expo, em Lisboa devido a um caso de infecção que afectou um funcionário judicial), ou seja, o que começou por ser apenas um receio meu, talvez até olhado como paranoia tornou-se real e assusta cada vez mais.

Também não vêm sendo uniformes os procedimentos de desinfecção de edifícios, salas e mobiliário, e tenho conhecimento directo de, num Tribunal correspondente a uma extinta Comarca da Região de Lisboa e Vale do Tejo, numa cidade da margem Sul que agora integra a mega comarca de Lisboa, já não se ter verificado a realização de desinfecção da sala de audiências entre a realização de julgamentos diversos (com pessoas que saíram e com novos intervenientes a carecer de utilizar a sala). Perante este estado de coisas, a limpeza e desinfecção são mínimos que não podem nem devem ser descurados e é bom que todos estejamos cientes dos nossos deveres mas também dos Direitos, não devemos facilitar, nem me parece curial que aceitemos arriscar na usual complacência nacional de “não vai acontecer nada…se Deus quiser!” muito própria da nossa cultura. E se Deus não quiser que não aconteça nada? (até porque as entidades divinas não costumam ser dadas agora a milagres em tempos em que nem a ciência parece capaz de os concretizar), perdoem-me o desabafo não isento de algum sarcasmo.

A somar a todos estes factos reais e preocupantes, que revelam que no fundo o pretenso desconfinamento na Justiça é um mero “Faz de conta que está tudo bem” existe todo um contexto envolvente que perturba a realização da Justiça e que potencia falhas, causa ansiedades severas em quem tem de lidar de perto, e tantas vezes impotente, contra certas evidências e que, a  não ser dito em público, pode alimentar a falsa ideia de que tudo retomou a normalidade: o acesso a serviços públicos presenciais como o sector dos Registos e Notariado, e ainda os Serviços de Finanças está condicionado, depende de marcação (dada a procura as agendas estão em sobrecarga) e tudo o que não possa ser resolvido à distância e por meios informáticos alternativos é gerador de forte preocupação e sem expectativa quanto a uma solução…enquanto os prazos correm à revelia destas contingências, em muitas situações.

Para que fique claro, eu não estou a reclamar por ter de trabalhar, agora muito desejo é ter condições mínimas de segurança, certeza, eficácia e capacidade de resolução de questões para conseguir desenvolver o meu trabalho com qualidade e assegurando os direitos dos cidadãos.

De não somenos importância, e porque também está relacionada com prazos, é a situação clamorosa em que se encontra a distribuição postal em Portugal. Devido a falta de recursos humanos (pois foram extintos contratos precários e não existem profissionais dos CTT em quantidade suficiente para proceder à entrega e distribuição regular da correspondência) há cartas que tardam em chegar ao destino, outras que chegam com prazos já quase no fim ou mesmo já findos, e quanto às entregas, nem mesmo o correio registado oferece qualquer segurança adicional, questões de não pequena importância em sectores como a área jurídica e mesmo no que diz respeito a documentação original que é necessária aos mais diversos sectores económicos. Onde vido e trabalho a distribuição postal é feita por dias e zonas, não sendo possível assegurar a distribuição em toda a localidade (e estou a falar de uma pequena Vila).

Senhor Legislador, importa deixar os cuidados paliativos e começar a pensar em termos de cuidados continuados em todas estas temáticas, sob pena de o caos acumulado ser ainda mais doloroso e mais difícil de reparar em termos de danos e sob pena de a Justiça vir a estar envolvida num caos ainda mais pernicioso do que o excesso de pendências a que tanto se aponta o dedo. Urge começar a pensar pelo menos a médio prazo e não no imediato!


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