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“Fomos muito felizes sempre a trabalhar juntos”

Natural de Palmela, a actual proprietária D. Olímpia Pereira, com 76 anos, recorda-se do Retiro Azul original “que servia os melhores pastéis de nata de que há memória. Quando completei a quarta classe, a minha mãe deixou-me vir cá abaixo (morava na zona histórica de Palmela) para vir comer um e nunca me esqueci disso. Eram feitos por um pasteleiro numa casinha pequena quase em frente e de forma muito artesanal mas eram deliciosos.” 

Olímpia Pereira recebe-nos na sua casa, construída pelo marido, António Pais Pereira, no piso superior do restaurante, e que guarda as memórias “de uma vida que sempre foi muito feliz. Foram 52 anos de casamento que terminaram com o falecimento de António Pereira em Setembro de 2016, e dos quais relembra “os momentos lindos que vivemos, e por isso é que eu digo sempre a toda a gente: vivam a vida, aproveitem cada momento e sejam felizes. E é com um largo sorriso, embora de lágrimas nos olhos, que recorda como foi o encontro com o seu ‘Ninho’, “eu só podia ser sempre uma mulher feliz porque tenho tantas histórias bonitas na minha vida. 

Ele tinha um quarto alugado e passava pelo local onde eu estava e reparava em mim mas eu nem ligava a isso, foi perguntar informações minhas ao patrão e soube que além da seguradora, eu estava a trabalhar nas bilheteiras do cinema, para onde fui quando fiz 18 anos. Um dia ele chegou lá mas em vez de ir ao guichet, veio à porta e eu atrapalhada que estava com uma meada de linha, disse: ‘não se importa de segurar aqui?’, mas sem maldade nenhuma. Ele pegou, e no fim pediu-me namoro. Eu fiquei sem resposta, só disse que tinha de falar com os meus pais. Mas fiquei muito contente, porque ele era muito bonito só que nunca pensei que fosse a mim que ele quisesse.  

Os meus pais não queriam muito porque nessa altura não se gostava que as raparigas casassem com ‘rapazes de fora’. Mas valeu-me um tio que estava no Brasil e que quando cá veio foi comigo e com a minha mãe a Lisboa e a Corroios falar com familiares do António, que o gabaram muito.” 

Casaram no dia 19 de Maio de 1963, na igreja de Palmela, “um dia tão bonito. Fomos para o copo-de-água nos Caceteiros,. 

Casados de fresco “fomos morar para uma casa a estrear, a mais cara de Palmela, custava a renda 450 escudos, e depois o próprio senhorio achou que era demais e baixou o valor. Mas o meu marido ganhava bem e eu fiquei em casa, durante dez anos. Depois construímos uma casa num terreno ao pé da minha mãe, a seguir comprou outros terrenos e fez duas vivendas, quando era nova dizia sempre que havia de ter um carro e uma casa, e era natural porque era sonhadora e sempre lutei para ter isso, tive dois empregos e por isso conseguimos também fazer a vida que quisemos, viajamos muitos.”  

Uma das grandes paixões de D. Olímpia Pereira são os bordados, os quais expõe com orgulho nas paredes da sua casa. “Para mim a felicidade era poder estar sentada sossegada junto à porta de casa da minha mãe e bordar. Comecei a trabalhar com 14 anos, na agência de Seguros Augusto Real, que ficava ao pé da Câmara Municipal e no primeiro mês ganhei cinquenta escudos de ordenado, o que foi uma fortuna para mim.  

 

Nesse dia saí dali e fui à loja do Gama, comprar linhas e pano de lençol para bordar. Mas quando cheguei a casa, o meu pai queria que devolve-se o que comprei de material para bordar porque achava que o dinheiro era para trazer para a casa, mas eu entendia que tinha de começar a fazer o meu enxoval. O meu pai era uma joia, mas naquele tempo as pessoas eram muito agarradas ao dinheiro.” 

 História de sucesso  

 António Pereira explorou durante décadas o restaurante no qual trabalhou sempre como empregado de mesa. “Ele era natural de Troviscais Fundeiros, em Pedrógão Grande e veio para Lisboa com 16 anos. Depois foi fazer a tropa para Setúbal, onde estava na messe de oficiais. Aos fins-de-semana e feriados vinha de lá em bicicleta para o Retiro Azul como empregado de mesa, para ganhar um extra, e o Sr. Esteves sempre gostou muito dele” recorda a esposa. “Na altura ganhava-se muito bem como empregado de mesa, tinha dez por cento das receitas e ainda as gratificações, porque era muito simpático e eu dizia-lhe que ele era o ‘melhor empregado de mesa de Setúbal’.” 

A determinada altura, surgiu a vontade de ter um negócio próprio “e ainda esteve quase a ficar com o restaurante das Pontes, mas quando já tinha tudo encaminhado outra pessoa ofereceu mais e ficou com o negócio, mas ainda bem que isso aconteceu porque depois ficámos com o Retiro Azul, com outro sócio, o Zé Lopes “Padeiro”.  

Lá se fez o negócio, em Outubro de 1973. O meu marido não sabia dizer que não, fosse a pedirem-lhe dinheiro ou para ser fiador ou outros favores e não via maldade em ninguém, acreditava muito nas pessoas, mas teve algumas desilusões. 

Ainda no tempo da sociedade foi comprado “ao Xavier Santana o prédio do restaurante, que era uma casa velha, e onde também moraram os antigos donos, e foi aí que o meu marido fez esta casa.” 

A ela calhou-lhe começar a trabalhar no restaurante já com cerca de 31 anos, depois de ter saído dos anteriores empregos por decisão do marido, devido à saída do cozinheiro. “O Bazílio foi para a Guiné e eu achei que não valia a pena estar a contratar outra pessoa” e acabei por conseguir dar conta da cozinha mas também por causa da minha teimosia, porque entendi que se tinha dito que conseguia, não podia depois dar parte de fraca.” 

Foram tempos em que o Retiro Azul trabalhava quase todos os dias a todo o vapor. “Tínhamos entre 17 e 18 empregados, 6 empregados de mesa, 6 pessoas na cozinha comigo, 4 ao balcão, 2 mulheres na copa e 3 na limpeza.” 

Ficou conhecida na cozinha pela ‘caldeirada de cataplana’ e pelo molotov. “Não sabia a receita, foi por tentativa e erro, tantos que me saíram mal mas lá acertei e depois vendíamos às dúzias. As pessoas estavam habituadas a vir cá comer a tortilha e o frango, filetes e bifes de cebolada, porque o anterior dono era galego e servia esses pratos.” 

Em 1994 foram feitas obras de fundo no restaurante, que deram uma nova vida ao restaurante”.  

O seu gosto apurado levava-a a tentar sempre melhorar também a decoração do espaço. “Andava sempre a fazer arranjos, a inventar coisas, colocar flores frescas nas mesas no Verão, e velas no Inverno.” 

Considera que “foi muito fácil trabalhar com o marido. Ele é que percebia de hotelaria e eu fazia a escrita”. 

Outra ajuda que teve no restaurante foi a de Nuno Gil, hoje seu genro e reconhecido mestre doceiro em Palmela. Quando veio para o restaurante, começou a aproveitar a cozinha para fazer o doce conventual e a fazer experiências, a vender, e agora tem o negócio dele. Nessa altura trabalhávamos muito, feriados, fins-de-semana, festa das Vindimas, dia de Natal e de Ano Novo mas eu estava feliz porque estava com a pessoa que amava mais no mundo, e por isso tornou tudo muito fácil.  

 Ganhos 

cerca de 27 anos a derrocada do muro na rua Hermenegildo Capelo, “numa noite de chuvada e de muito movimento no restaurante, e em que muitos fugiram sem pagar”, permitiu ao casal comprar em hasta pública o terreno e nele construir o Hotel Varandazul 

Outro negócio que levou avante foi o fornecimento de almoços para a empresa ‘Controldata’. “Vieram pedir-nos para servirmos cerca de 40 refeições diárias, com sopa, prato e sobremesa. E isto durou uns três anos, até a Controldata fechar.” 

O nosso restaurante, tirando algumas excepções nunca foi muito frequentado pelas pessoas da vila, os nossos clientes eram do Barreiros, Setúbal, Montijo etc, porque achavam que era muito caro, e isso era um engano. Tinha a fama de ser para elites, embora depois da obra alguns tenham vindo cá para ver as mudanças.” 

Decidi usar o espaço de cafetaria para abrir a tabacaria, com três vitrinas altas só para louças e brinquedos e outras para as bijuterias e pequenas coisas. Vendia tanto, sobretudo na altura do Natal!”.  

A mercadoria ia buscar a Lisboa “de comboio porque eu tinha medo de levar o carro, e depois vínhamos carregadas de sacos e sempre com dificuldade em apanhar táxis em Lisboa, porque eles não paravam quando nos viam carregadas. A minha nora ficava escondida com os sacos e eu mandava parar, para não nos deixarem em terra. Depois fui-me habituando e levava o carro para o Martim Moniz, no Bem Formoso. E ia a Espanha comprar brinquedos, como os bebés carecas e outros, que eram um sucesso, tinha tanta encomenda. Íamos de autocarro. Nem sempre corria bem, porque os carabineiros andavam sempre a ver se descobriam contrabando e depois tínhamos de ir à casa da fronteira e dizer para quem eram as coisas. Uma das senhoras, a caseira da quinta, só dizia que era para o neto, e para a neta, e o polícia perguntou-lhe quantos netos tinha e ela tão atrapalhada não soube responder!”.  

Antes do falecimento de António Pereira, o Retiro Azul chegou a estar encerrado “durante três anos, as pessoas falavam que, se ia perder o ex-libris de Palmela, que não devia fechar, mas foi uma boa opção. Depois de analisar algumas propostas para arrendar o restaurante, de acordo com os meus filhos, resolvi arrendar”. 

Mantém actualmente a gestão do café-papelaria. “Tenho quatro empregados”. Afirma que nunca pensou em vender o Retiro Azul e “felizmente as coisas estão a correr bem”. 

A apoia-la tem os dois filhos e os netos. “Os meus filhos todos os dias me vem dar um beijinho e os netos vêm cá almoçar muitas vezes. E é o facto de ter uma boa família que me permitiu gerir a perda do meu marido, e por isso também tudo faço para os ver felizes. Estão sempre a dizer-me para aproveitar tudo, ir em viagem, comer o que me agrada, até porque com a idade que tenho é preciso aproveitar tudo. Os momentos mais complicados vive-os ao serão. “Quando venho para casa, falta aquela pessoa com que conversar. Por vezes tenho algo engraçado para contar e penso: ‘ah, tenho de ir contar esta ao Ninho’ e depois caio em mim.” 

Só não mantenho a gestão do restaurante, embora tenha a certeza de que conseguia mas é muito trabalho e os meus filhos acham que é altura de eu descansar.” 


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