Opinião

Filhos de um Deus Menor…e outras inquietações!

Todos sentimos que o mundo está em colapso. Além da questão epidemiológica e de saúde pública inegável, em Portugal e no mundo, é certo que todos os aspectos das nossas vidas, sem excepção estão a sofrer mutações tão assustadoras como as do vírus que chegou para nos destruir.

Inevitavelmente a economia à escala global já está a ser afectada (curiosamente acho que talvez a China possa vir a sair-se bem desta questão, o que não deixa ser amargamente irónico) e também as economias familiares de todos nós, em maior ou menor creio que a crise irá atingir os três sectores de actividade, agricultura, comércio e indústria e serviços.

Aliás, assusta-me deveras pensar que em breve possam vir a escassear bens essenciais, e certamente já escasseia em muitas famílias o rendimento disponível para que possam continuar a assegurar as suas despesas mensais, incluindo a alimentação. Perdoem-me ser profetiza da desgraça, mas há que ser realista, já nem se trata de pessimismo mas de realismo.

E perante este cenário, e focando-me apenas em Portugal, dir-me-ão, sim há dificuldades, por isso mesmo o Estado vem providenciando um conjunto de medidas de apoio às quebras de rendimentos nas famílias, nas actividades económicas e em diversas áreas, sendo constante e diário o ritmo de produção legislativa quanto a tais medidas (esta intensa produção legislativa é real, bem o sei por dever profissional) e todas as semanas se aguarda a apresentação de medidas públicas de apoio aos Cidadãos nesta difícil situação em que nos encontramos.

Aliás, é próprio de um Estado de Direito democrático ajudar os seus cidadãos em momentos como este, como referiu a Senhora Ministra da Justiça esta semana que passou no debate parlamentar, nós (leia-se Portugal) não somos um Estado que deixe para trás os seus cidadãos, nem mesmo os reclusos.

É público e foram já aprovadas medidas com vista a promover a libertação de reclusos, através da concessão excepcional de reduções de pena e de indultos presidenciais, não alimentarei polémicas (conforme pediu o nosso Presidente da República) e reconheço que ficam de fora desta possibilidade de saírem dos Estabelecimentos prisionais reclusos que cumpram pena por crimes mais gravosos como homicídio, pedofilia, violação, violência doméstica, tráfico de estupefacientes, incêndios florestais, bem como todos os crimes praticados por titulares de cargos públicos ou políticos.

É inquietante pensarmos se, por força da rapidez da decisão, foram acauteladas devidamente questões como: rede se suporte familiar e/ou social dos reclusos a libertar, se os mesmos possuem residência fixa e como será assegurado o seu sustento. Inquieta-me pensar em que moldes irão as autoridades aferir o cumprimento da obrigação de recolhimento por parte dos reclusos em liberdade (sendo realista, teremos sequer meios técnicos e recursos humanos suficientes para tanto?) e claro, vou acreditar que todos os reclusos a libertar apenas poderão sair para o seio da comunidade após devidamente testados quanto a possíveis infecções por Corona Vírus. Não estaremos a criar um barril de pólvora? E no interior dos estabelecimentos prisionais não haverá risco de motins pelo facto de haver tratamento diferenciado? São meras dúvidas de alguém que, por inerência profissional, tem alguns conhecimentos sobre a vivência nos Estabelecimentos prisionais.

Mas há uma verdade que vem suscitando choque, tristeza e forte sentimento de revolta nas redes sociais, essencialmente entre as classes visadas, e que nunca será demais expor perante os leitores que se interessem por saber o que se vivencia nos mais diversos sectores e áreas profissionais.

Importa contar ao mundo que existem em Portugal classes profissionais cujos membros são verdadeira e propriamente “Filhos de um Deus Menor”, refiro-me aos Advogados, Solicitadores e Agentes de Execução. Todos estes operadores essenciais no sistema de justiça estão desprovidos de qualquer ajuda ou apoio financeiro, pois ainda que sejam, em grande parte, trabalhadores independentes, não podem aceder aos apoios para os demais trabalhadores independentes porque não tiveram direito à aprovação de medidas de excepção concretas que lhes possam valer neste momento.

Esta semana foram a votos na Assembleia da República medidas de apoio a estes profissionais que não mereceram aprovação devido aos votos em contrário dos Grupos parlamentares do PS e do PSD. O PS entende, em resumo e simplificadamente, que não deve imiscuir-se na relação entre estes profissionais e o seu sistema de “Previdência” privado, pois estão obrigatoriamente inscritos na Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores. Sucede porém que a “previdência” privada destes profissionais nada lhes “providencia” a não ser a obrigatoriedade de continuar a pagar contribuições (calculadas com base em critérios que vêm merecendo forte contestação pública dos “beneficiários”, tendo já suscitado medidas extremas de protesto como Manifestações, Petições Públicas, cartas abertas tudo ainda sem sucesso na prática) ou, em alternativa, suspender as inscrições nas respectivas ordens profissionais.

O PSD, tendo inicialmente e de forma pública apoiado a necessidade de medidas de apoio a estes profissionais do foro, veio a votar contra a sua adopção no Parlamento, pelo que além da indiferença não sei o que choca mais, se esta mesma indiferença ou se a incoerência neste caso concreto.

Somos pois, e assim nos sentimos em grande parte, abandonados pelo Estado, Estado perante o qual temos a incumbência de auxiliar na realização da Justiça e de sermos profissões de interesse público. Defendemos direitos, e a nós quem nos defende? É caso para perguntar e espalhar estas dúvidas aos quatro ventos. Como irão sustentar-se muitos de nós perante a quebra de rendimentos? Como irão os pais e as mães advogados sustentar os seus filhos?

Esperava-se, das Ordens Profissionais respectivas, uma indignação mais musculada, mais activa , mais assertiva e dinâmica, que não se ficasse pela mera crítica. No que tange aos Advogados, importa que se diga que apenas foi tomada uma tímida e, salvo o devido respeito, incipiente medida de apoio, o diferimento do pagamento de quotas entre Abril e Setembro deste ano, que serão liquidadas em prestações no próximo ano. Apesar de se falar na imprensa de uma suspensão, não é de suspensão que se trata mas de um diferimento do prazo de pagamento (à semelhança de uma moratória de crédito), a meu ver impunha-se uma isenção excepcional da obrigação do pagamento de quotas ao menos durante o período de Estado de Emergência e dos dois meses que se lhe seguirem.

Uma palavra de apreço para alguém que, do lado dos Advogados, vem chamando a atenção para estas dificuldades, bem como para os limites e novos condicionantes e desafios na prática actual e futura da advocacia. Não poderia, em consciência, e porque conheço a realidade, deixar de expressar publicamente a minha gratidão para com o Dr. João Massano, Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, que está atento ao que se passa de facto no terreno e consciente dos ataques constantes à advocacia nacional. Bem-haja por fazer ouvir a nossa voz, ainda que quem de Direito se recuse a ouvir o que temos para dizer.

Tudo ponderado, entre choque, tristeza e muitas dúvidas e inquietações é inequívoco e humano o sentimento de termos sido votados ao abandono pelos decisores políticos, somos nós, profissionais forenses, filhos de um Deus menor? Recordo as palavras da Senhora Ministra da Justiça, não somos esse Estado que deixa pessoas para trás. Não somos mesmo? Tenho quanto a tal entendimento muitas dúvidas e sérias inquietações.

Não sairemos incólumes desta tragédia, pois que muitos dos que não pereçam às mãos do vírus correm sérios riscos de indigência.


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