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‘Convenci-me que ia morrer’: Acidente de moto leva à criação da APAVAM

Todos já ouvimos e dissemos frases como «a vida pode mudar num momento», e muitos são os que vivenciaram essa situação.

Entre estes está Patrícia Tenreiro, 29 anos, advogada, e como a própria se descreve, “uma pessoa sempre animada e feliz, sem conseguir estar parada”.

Até ao dia 8 de Agosto, para o qual poderia usar o adjectivo ‘fatídico’, não fora aquilo que aconteceu ter ocorrido precisamente a Patrícia Tenreiro.

“Lembro-me de era um domingo, um dia bonito, e eu estava ‘estupidamente’ feliz. Cantava alto enquanto tirava a mota da garagem e o meu namorado tirava a moto dele. Fomos até Cabo Espichel e Sesimbra, estivemos sentados no paredão e eu olhei para uma loja e disse ‘vou comprar um bikini’, mas não o fiz, e regressámos ao Seixal para eu ir buscar o bikini a casa e seguirmos para a casa dos pais dele, passar a tarde na piscina. Hoje pergunto-me: ‘e se tivesse entrado naquela loja?’.”

O ‘destino’ aguardava Patrícia cerca das 12h03 de 8 de Agosto, em Fernão Ferro, conforme na altura o Diário do Distrito noticiou.

Um automobilista saiu da Rua Quinta das Conchas, “sem parar no stop e atravessou a EN378 para ir para o sentido Seixal-Sesimbra, ou seja, a faixa contrária à que eu vinha. Não tive tempo de pensar em nada, apenas tive noção de que lhe ia bater, porque o carro se atravessou completamente à minha frente. Sei que ia devagar porque conheço bem a estrada, todos os fins-de-semana costumamos ir até Sesimbra, e sabemos que é muito perigosa, além de que havia muito trânsito.”

Após o violento embate, Patrícia Tenreiro acordou no Hospital de S. José, em Lisboa, para onde foi transportada devido à gravidade dos ferimentos e à necessidade de cirurgia vascular, devido às feridas graves nas virilhas, “fiz compressões arteriais porque a suspensão da moto partiu-se, saltou e espetou-se nessa zona”.

Os primeiros momentos no Hospital “foram um horror porque senti todo o frenesim, ouvia gritar «temos o osso exposto, raio-x depressa», máquinas a que eu estava ligada sempre a apitar, e os médicos e enfermeiros a dizerem-me para ter calma, fizeram-me um TAC a todo o corpo e horas mais tarde, um médico veio retirar os pensos de compressão nas virilhas e viu que eu estava a esvair-me em sangue, e levaram-me de urgência para a pequena cirurgia.

Recordo-me de ter passado por um relógio que marcava 23h27, sabia que às 11h30 tinha saído de Sesimbra e tive noção das horas que já estava no Hospital.

Estava muito fraca e ouvi também dizerem que me iam dar morfina, convenci-me que ia morrer, a esvair-me em sangue, e vim a saber que estive perto disso. Oscilava entre a consciência e o sentir-me a apagar.”

Foi depois transferida para o Hospital Garcia de Orta, “e quando me mexiam para a higiene ou tratamento, sentia os ossos a moverem-se”.

Foto tirada após o acidente de Patrícia Tenreiro

‘Se hoje dei dois passos, amanhã darei três’

Do acidente pouco se lembra. “Li depois os testemunhos em vários grupos onde as fotos foram partilhadas. E tudo confirmou o que eu tinha percebido naqueles minutos.

Toda a gente dizia que era impossível eu ter sobrevivido, mas felizmente sobrevivi.

Tenho muitas mazelas, uma ‘dentada de tubarão’ na perna onde o osso ficou exposto, a bacia ficou esmigalhada, o que me obrigou a estar quatro semanas e meia totalmente imobilizada, e o sangue provocado por essa lesão desceu para a minha perna direita. Tive de fazer injeções durante mais de um mês para desfazer os coágulos.”

Após onze dias hospitalizada, “onde tive um excelente tratamento”, foi para casa dos pais do namorado, “onde tenho todo o apoio familiar que preciso, porque a minha família está em Coimbra”.

Com a força de vontade que a caracteriza, conseguiu que “a recuperação esteja a correr de forma muito mais rápida do que o esperado. Nos primeiros tempos não conseguia andar e assim que me tentavam colocar de pé, desmaiava. Quando comecei a conseguir estar de pé, só pensava ‘se hoje dei dois passos, amanhã darei três. Hoje fui à casa-de-banho, amanhã irei até à cozinha. E o que me salvou foi conseguir manter sempre uma atitude muito positiva sobre o que podia alcançar a cada dia, e manter a atitude optimista que sou e porque gosto de me desafiar.

Mas chorei muito. Com todo o sangue que perdi podia ter morrido, mas depois preocupava-me a possibilidade de ficar numa cadeira de rodas, porque não sentia as pernas, e aqui em casa chorei porque ao olhar-me ao espelho via que estava ‘torta’, e já não gostava da Patrícia que via.”

Aguarda agora a consolidação dos ossos que se partiram, “e no futuro posso vir a ter problemas numa gravidez, e parto natural está fora de questão”.

Num dos momentos mais complicados da recuperação, “quando pensava que se calhar o acidente era um sinal para deixar as motos de vez”, teve uma surpresa “que me deu uma nova força para dizer ‘tenho de ficar boa depressa e ir com a Associação para a frente, porque todos os que estiveram aqui à porta a chorar, merecem que me esforce ainda mais para ficar boa depressa.”

Os elementos do MotoClube de Setúbal visitaram Patrícia Tenreiro e entregaram-lhe os emblemas, “que fiz questão de colocar todos no meu colete. Na altura, vi-os pela varanda, numa cama articulada, porque não me conseguia mexer ainda. Mas quinze dias depois, consegui ir à sede do Motoclube com as duas canadianas e a muito custo, e nem queriam acreditar que era eu ali de pé com eles, e dizer-lhes que ‘foram fundamentais para a minha recuperação’.”

Estado em que ficou moto e viatura após o embate

Condutor e seguradora não assumem responsabilidade

Além da situação física muito complicada, Patrícia Tenreiro enfrenta ainda agora uma guerra judicial, “uma vez que o condutor afirmou ao seguro que eu é que o ultrapassei, mas foi ele quem se atravessou na minha faixa de rodagem, aliás o meu namorado e outras pessoas tiraram várias fotos ao acidente.

Disse ainda que estava um carro parado na faixa no sentido de Sesimbra, e que viu, no sentido contrário, aproximar-se um carro e uma moto (a minha). Em declarações ao perito do seguro, disse que a minha mota vinha em manobra de ultrapassagem e, pasme-se, que vinha a ultrapassar, em zona de traço contínuo, um carro com a matrícula XPTO, que é a matrícula do carro onde embati! Então fico sem perceber se bati ou se ultrapassei o dito carro.

Isto é a estupidez da situação. Para o ultrapassar ele tinha de seguir à minha frente; eu não transpus nenhum traço contínuo porque este está na zona do cruzamento e o embate deu-se na minha faixa de rodagem; e se eu tivesse feito uma ultrapassagem, a um domingo com transito compacto para Sesimbra, iria era embater num veículo que viesse em frente, ao passo que o impacto deu-se todo na minha faixa de rodagem. Agora vamos ter de resolver por outros lados.”

Como profissional liberal, “vi a minha vida toda parada, se não trabalhar não ganho. Tinha julgamentos todas as semanas em setembro e outubro e tive de adiar tudo, através de uma colega. Felizmente tive uma excelente compreensão do director-geral da empresa, a quem disse que podiam colocar outra pessoa para fazer os meus julgamentos, e não aceitaram.”

Da parte das autoridades também não teve melhor sorte. “O auto de notícia da GNR foi elaborado apenas com base nas declarações do condutor, eu não estava capaz de falar, e não recolheram testemunhos de ninguém que esteve no local do acidente.

Já estava em casa há uns dias, quando me ligaram do posto de Fernão Ferro a intimar-me para ir lá prestar declarações, ao que respondi que não me podia sequer levantar da cama. Ainda me perguntaram se ‘ia estar assim muito tempo’ o que achei descabido, e o agente ficou de me ligar depois, o que não fizeram, e a seguradora fechou o processo.”

Logotipo da APAVAM

Associação Portuguesa de Apoio à Vítima de Acidente Motard – by Patrícia Tenreiro

Confrontada com esta situação, “e com todo o tempo que tive para pensar enquanto só podia olhar para o tecto, por tudo o que um acidentado de moto passa, bem como a família e amigos” Patrícia Tenreiro decidiu usar os seus conhecimentos para auxiliar quem passa por situações semelhantes.

“Se calhar muita gente ficava-se por esta resposta da seguradora. Mas ao colocar-me questões sobre ‘porque comigo’, e ‘eu não merecia isto’, ‘porque não fui comprar o bikini’, de repente algo me toca e recordei-me que quando era mais nova fiz vários voluntariados, na APAV, com sem-abrigos, na Casa Acreditar.

Ao mesmo tempo pensei que ‘se sentes esta dor, podes voltar a ser a pessoa que foste nessa altura, e ajudar até melhor porque agora percebes a dor porque outros motards passam quando sofrem acidentes’. E também porque em qualquer acidente, quem vai de moto, é sempre apontado como culpado.

Isso fazia cada vez mais sentido, porque também passei por um certo julgamento público, porque fui dando conta nas redes sociais do meu processo de cura. E volta e meia surgiam os comentários a criticarem-me por dizer que queria voltar a comprar uma moto e a conduzir.

Ser motard é ter um determinado espírito, que quem não tem moto não sente.”

As críticas não a demoveram, “até porque também recebia muitas mensagens de pessoas a partilhar histórias, umas de superação, mas outras com fins muitos tristes, de pessoas que se identificavam com o que eu estava a passar.”

Considera que “o pior já passou para mim e por isso achei urgente criar a APAVAM – by Patrícia Tenreiro, que nasce disso: do voluntariado que já tinha feito no passado; dos julgamentos de quem não é motard me estavam a fazer; e dessas mensagens de pessoas a procurarem-me com as suas histórias”.

O objectivo da Associação “é dar esse apoio aos motards vítimas de acidente, estando com eles na linha da frente, apoiar as famílias, mas também estar com aqueles que já foram esquecidos por muitos e dizer-lhes ‘estamos aqui por ti, irmão/irmã motard’. Todos já fomos a encontros e às bênçãos dos capacetes e vemos lá pessoas em cadeiras de rodas, a coxear, mas que vão lá com os seus capacetes.”

A APAVAM pretende “que cada pessoa que passou por algo assim tenha um local onde pode contar a sua história, mas também procurar ajuda jurídica com as seguradoras ou outros aspectos”.

Para tal, Patrícia Tenreiro conta com “a ajuda de dois colegas advogadas de Lisboa e Sintra e de uma amiga psicóloga clínica que se disponibilizou para ajudar a vítima e a família. Ainda recentemente uma mãe de uma motard da minha idade me contactou a dizer que perdeu a filha, que é uma ‘mãe motard de luto’, e que se disponibilizou a ajudar com a sua experiência.”

Outro objectivo que pretende alcançar, através de parcerias com entidades, “é conseguir que sejam disponibilizados equipamentos para as várias fases de recuperação, de umas canadianas a cadeiras de rodas ou camas articuláveis. Mas só vamos conseguir reunir isso com a divulgação deste projecto. E pelas mensagens que recebo, este projecto cada vez me faz mais sentido, e se o meu acidente aconteceu para a APAVAM nascer, então o meu acidente valeu a pena.”


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