Opinião

Cada um com a sua cruz!

Na passada semana viveu-se o período pascal, com forte pendor e significado religioso para uns, indiferente para outros, mas associado, de uma forma geral, e mesmo que encarando a questão de forma pagã, a uma época de convívio com a família, de regresso dos emigrantes às suas localidades de origem, e de cumprimento de tradições e rituais cristãos, pagãos ou mesmo híbridos, com uma propensão de convívio muito equiparada ao Natal. Noutros casos este período festivo é também propício a umas férias fora de casa, a norte ou a Sul, e é habitual os mais novos estarem em pausa lectiva (este ano a pausa lectiva foi mais ampla, forçada e alterou por completo as rotinas e vivências também dos jovens alunos em todas as escolas do país.

Este ano tudo mudou, e em pleno estado de emergência nacional, com regras mais apertadas para a Páscoa, precisamente numa tentativa de controlar excessos, foram limitadas as deslocações entre Concelhos, para evitar um êxodo de férias que fizesse aumentar exponencialmente o risco de contágio, num momento em que as regras do bom senso aconselham a que se não deite a perder todo o sacrifício de isolamento social a que vem obedecendo a maioria da nossa população (pelo menos quero muito acreditar que é a maioria que cumpre as regras).

Naturalmente, todos nós começamos a acusar maiores níveis de ansiedade, e surgem mesmo focos depressivos e de grande instabilidade, pois somos seres sociais por natureza. Mas algo que oscila entre a teimosia, a profunda ignorância, a temeridade, a irresponsabilidade e mesmo, em última análise, uma conduta verdadeiramente criminosa levou a que assistíssemos a imagens e situações que me deixaram estarrecida, revoltada e incrédula. Quase todos vimos por vários pontos do pais vídeos de rituais próprios da páscoa, praticados na Rua e mesmo em Lares de idosos, onde as pessoas beijavam a cruz de cristo, fazendo-se tábua rasa das recomendações mais básicas em termos de saúde pública, vimos em plena rua famílias a beijar a cruz (algumas pessoas transportando crianças ao colo), cidadãos de várias idades a beijar a cruz, displicentemente na via pública, em massa, como se estivesse tudo bem, como se estivessem legitimados, quiçá por força de protecção divina, a praticar tais actos.

Mais revoltante ainda foi assistir à prática do ritual de beijar a cruz em lares de idosos (dos maiores focos de potencial infecção e onde se dá, em muitos destes, tudo por tudo para minorar o mais possível o risco de contágio, pois estamos perante uma população de risco em grau máximo, pela idade e pela natural comorbilidade de várias patologias próprias desta fase do ciclo de vida humano) aqui é verdadeiramente criminosa, de forma ainda mais acentuada esta conduta, tanto mais que sucede incentivada por ministros da fé, por responsáveis internos das instituições de cuidados a idosos e mesmo perante a complacência e cumplicidade de, pelo menos uma profissional de saúde, tanto quanto veio a lume na comunicação social.

É lamentável, é inconcebível, e as crenças não podem sobrepor-se, de forma alguma ao Direito à saúde quer dos familiares dos envolvidos, quer dos profissionais de saúde que tenham de lhes prestar cuidados caso fiquem infectados, quer de todos os que com eles se cruzem em rotinas tão básicas como uma ida às compras, aos correios ou no âmbito de outras deslocações legítimas, necessárias e permitidas por lei. Não vale tudo, nem pode valer tudo em nome da fé Cristã, ou ainda que fosse outra fé ou outra crença! É verdadeiro terrorismo, é uma atrocidade comparada ao extremismo islâmico ou aos tantos e sanguinários crimes que praticou a inquisição, e isto lembrou-me os autos de Fé. E ver idosos a ser incentivados a esta prática por aqueles que legalmente têm o dever de cuidar deles é algo para que me faltam as palavras para qualificar tais factos.

Mais a meio da semana ficámos a saber que, mesmo o próprio Estado entrou em contradição consigo mesmo, e foi decidido pelas autoridades públicas promover e permitir celebrações do 25 de Abril e do Primeiro de Maio, com recurso a reunião presencial de convidados. Celebrar a liberdade quando ela nos foi tirada por força das circunstâncias já é de uma perversa ironia, assumir esta atitude quando se pede um imenso sacrifício a toda a população é de uma assustadora injustiça e, sobretudo, é clamorosa a irresponsabilidade, por muito boas e positivas que possam ser as intenções (até acredito que sejam) mas exige-se mais do que nunca uma aturada ponderação nas decisões a tomar, tal como na questão religiosa, também não pode valer tudo na política, e também esta não pode sobrepor-se à saúde. Na senda de Orwel na sua brilhante Obra “O Triunfo dos Porcos” fica-nos a pairar na mente a ideia de que “Somos todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros”, que lógica há em celebrar a liberdade quando não a temos senhores governantes? Pensem em como irão sentir-se todas as famílias enlutadas que nestes tempos nem podem despedir-se dos seus ente queridos, vejam reportagens alusivas a este tema, falem com quem tenha enfrentado esta dor, e ai talvez assumam que não há razões para celebrar, bem longe disso!

“Cada um com a sua cruz!” –  como diz o povo na sua ingénua mas imensa sabedoria!


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