Opinião

Algures, Uma Criança

Esta semana, um artigo de opinião por Rita Cássia, arte educadora, Antropóloga. 

– É inútil dizerem que eu sou o filho deles. Por mais que me amem, tenho saudades da minha mãe e da minha irmã. Tenho muitas saudades. Eu não sou daqui, eu sei. Não se apaga facilmente a memória de alguém. Mas Eles acreditam que sim. Que eu terei que ser grato por tudo que fazem por mim. Porque eu tenho uma educação paga. Porque eu vou a médicos pagos. Porque eu visto roupas de marcas. Porque eu tenho uma sapateira com os modelos mais bonitos da Nike. Duas bicicletas. Um smartphone, um tablet, um cão.

Como podem Eles pensar que podem comprar o verdadeiro amor de alguém? Não é que eu não os ame, não é isto. Aprendi a amá-los. Nunca me trataram mal. Pelo contrário, sofrem com os outros porque eu sou um jovem negro. Quando eu fui adoptado por Eles, alguns dos seus amigos riam-se de mim. Numa tarde de domingo quando todos estavam reunidos na sala de estar, eu estava a brincar com uma das meninas que tinha a mesma idade que eu e que eu nunca mais vi. Estávamos tão felizes, brincávamos com um Cubo de Rubik e ouvimos de repente uma piada muito má. Não tiveram vergonha alguma e disseram mesmo à minha frente que eu parecia com um macaquinho ali a brincar com a filha deles.

Eles brigaram com eles, colocaram aquela gente porta à fora. E nunca mais vi a menina com quem eu costumava brincar. Chamava-se Clara, era muito magra e era muito branca. Por vezes penso na Clara. Com os pais que ela tem, se um dia tiver um namorado negro, das duas uma: ou fugirá com ele ou sofrerá de amores.

Não é fácil ser uma criança negra. Eu não sei porque me separaram da minha mãe e da minha irmã. Eu era feliz. Disseram-me uma vez que a minha mãe me maltratava, é mentira e eu sei que é mentira. A minha irmã estava doente. Foi por causa da doença da minha irmã, que nós viajámos para cá. Eles nunca tiveram a coragem de sentar-se comigo e de me perguntar se eu sou feliz. Sempre que percebem que eu quero dizer-lhes uma coisa a sério, fogem. Fogem sempre. Mas Eles sabem. Sabem que não podem comprar o verdadeiro amor de alguém. Procuro pela minha mãe e pela minha irmã desde que ganhei o meu primeiro Mac. Eles não sabem. Apago sempre o histórico de pesquisas. Mas nada. Nenhum sinal de que elas ainda estejam por cá.

Pergunto-me constantemente se elas ainda se lembram de mim. Será? Será que me esqueceram? Será que voltaram para a Guiné? Porque é que eu não as encontro? Será que ainda estão vivas? Deus não existe. Porque se existisse eu nunca teria sido separado da minha amada mãe e da minha irmã. Quando eu for adulto a primeira coisa que eu vou fazer quando eu já tiver condições para isto, vou embora daqui.

Este não é o meu lugar. Vejo a minha alma longe. Muito longe. Havia uma senhora negra. Cantava para eu dormir. Havia algumas crianças como eu, brincávamos e sorriamos. Eramos felizes. Deus não existe, porque se existisse eu estaria com a minha mãe, com a minha irmã e com a minha família. Mesmo sendo pobres.

Na minha escola, dizem que eu sou um preto com sorte porque eu fui adoptado e sou rico. E me pergunto rico em quê? Da minha família eu me lembro muito bem. Esta que tenho é emprestada. Eu não queria ser adoptado, eu disse isto ao Juiz. A minha mãe não queria que eu fosse adoptado. A minha irmã não queria. Eu era feliz. Eu tinha um mundo. Eu tinha a minha mãe. É claro que eu não vou deixá-los sozinhos quando forem velhinhos. Mas êi de procurar a minha família e êi de encontrar a minha mãe ainda viva. E abraçarei a minha mãe. E abraçarei a minha irmã. E chorarei. E não sei o que mais poderá vir a ser.

Nota: 

Práticas sociais que têm como princípios a criminalização da pobreza, a discriminação racial, étnica, a discriminação de género, a violação dos direitos humanos de mães e de crianças, são práticas barbáricas contra a humanidade.

Dia da Criança deveria de ser todos dias em que o Estado deveria ter a criança enquanto uma prioridade nacional. Cujo direito principal e inalienável seria o de não permitir com que crianças fossem arrancadas das suas mães, nem para centros de acolhimentos de crianças, nem para promoções de adopções forçadas, nem para regimes de guardas partilhadas com pais agressores de suas mães, e/ou respectivas famílias paternas.

Estamos muito longe de promovermos de facto igualdade de género em Portugal, bem como, a salvaguarda dos direitos humanos das crianças e dos jovens, devido a estas e outras práticas barbáricas. Políticas públicas e medidas legislativas são necessárias e urgem de serem implementadas.

 


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